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quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Maria comenta Nietzsche que comenta Tales


A Autora Maria Cristina dos Santos de Souza nos faz perceber a necessidade intrínseca e historicamente verificável de unificação das cidades gregas, levadas a um crescente isolamento, em conseqüência direta de sua profunda adesão a uma cultura extremamente perpassada por mitos e um “universo multifacetado da religião” que “congregava” “formas as mais primitivas e contraditórias de antropomorfismo, compondo, assim, uma verdadeira fantasmagoria grega”. Como afirmou a autora, as cidades gregas já não suportavam mais este estado de coisas, que “poderiam conduzi-las à destruição recíproca”, além da exposição fácil à suscetibilidade ao “fortalecimento progressivo do mundo oriental, ávido de outras terras e povos”.
Caminhando por essa via de raciocínio, a autora esboça um contexto límpido no qual situa a compreensão do pensamento de Nietzsche quanto ao surgimento da filosofia atrelado, contundentemente, a “uma tentativa de fazer frente ao processo de afastamento e de enfraquecimento das cidades gregas, erguendo-se contra o mito enquanto o principal causador desses processos”.
E é justamente em Tales que se divisa pela primeira vez, entre os helenos, a figura do “combatente ardoroso dos mitos”, pois havia urgência em “ultrapassar os parâmetros confusos e contraditórios dos mitos e estabelecer parâmetros mais simples, precisos e estáveis para as cidades”.
Começava, então, o combate racional dos guerreiros da “physis”. Liderados por Tales, como seu primeiro general, que utilizou, genial e estrategicamente, um artefato novo e assombrosamente arrasador: o conceito, causa-consequência do refletir filosoficamente.
“Tudo é água”, disse Tales. E ele quis dizer: basta de mitos, de isolamento, de enfraquecimento; “Tudo é uno” na natureza e vo-lo dou em forma de água, esta unidade sobejamente intuída e imensamente desejada, para que a sede de uni-cidade, também em vós, seja saciada, cidadãos gregos diversamente constituídos sob a mesma, “única” e velha mãe Grécia!
Geograficamente localizada próxima ao Oriente, sendo “praticamente um prolongamento da Ásia Menor”, a Jônia foi o berço da filosofia grega e talvez por isso mesmo tenha assimilado tão facilmente muito da antiga cultura oriental como os “conhecimentos biofísicos, matemáticos e astronômicos milenares”, donde também facilmente pode-se perceber a origem da intuição mística da unidade cósmica que, “transmitida aos gregos foi reaprendida e renovada por uma ampla capacidade de conduzir a um acabamento mais perfeito tudo o que caía em suas mãos”. E aqui, cabe-nos indagar: será que os criadores da Democracia não estavam, na verdade, e para se protegerem da dominação oriental, tomando para si exatamente aquilo que tornava os monárquicos e absolutistas governos do Oriente tão fortes e conquistadores: o espírito de unidade? E não seria mesmo compatível, essa estrangeira virtude política com sua conhecida e vivenciada diversidade nacional?
Assim começou a filosofia: diante do óbvio, o espanto e a contemplação efervescente do “vir-a-ser”. Não era apenas conhecimento, mas o “gosto sutil” pelo conhecer. Não era apenas conhecimento o conhecer gratuito, mas que fosse digno de ser conhecido, com cuidado, zelo e profunda sutileza.
Num salto, os mitos e as ciências antigas foram ultrapassadas; não por prazer de se situar à frente e acima, mas por uma imperiosa vontade de atingir o todo, em sua totalidade única, sepultando o obscuro e o fragmentário.
Então, a autora atinge o cerne do pensamento oculto e aparente de Friedrich Nietzsche, em relação a Tales de Mileto, bem como ao começo mesmo da filosofia.
Ademais, ressalte-se que o próprio Nietzsche, numa lucidez impecável, oferece-nos à apreciação a parábola, perfeitamente adequada, dos dois andarilhos diante do regato selvagem (o desconhecido), prestes à ultrapassagem. Um, o filósofo (a filosofia, o filosofar), de um salto, atinge a outra margem; o outro, o cientista (a ciência, o raciocinar), por natureza, cauteloso, detém-se na pequena pedra e não se harmoniza com o percurso e afunda..., calculando sobre como “chegar...”.
Por fim, como disse Nietzsche, o “clangor total do mundo” fora, de fato, integralmente ouvido por Tales, numa reverberação inconteste e que lhe deu uma absoluta e íntima certeza de ter conectado a abrangência (“Tudo”) do ser (“é”) em sua verdadeira natureza (“água”).


Jorge Pi

BIBLIOGRAFIA


MARIA, C.S.S.. TALES: A DESCOBERTA DO PRINCÍPIO DA UNIDADE GREGA, SEGUNDO FRIEDRICH NIETZSCHE. _________: _______, ______;

COLEÇÃO OS PENSADORES, Nova Cultural Ltda. São Paulo, 2000.

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