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domingo, 1 de novembro de 2009

O Princípio da Tolerância em Locke



John Locke nasceu no ano de 1632, em Wrington, nos arredores de Bristol. Estudou no Christ College (Oxford), sendo ali nomeado leitor de grego e de retórica. Interessou-se por filosofia moderna, medicina (tornando-se médico em 1667), química e física. Era assíduo leitor de Descartes e de Robert Boyle. Mas também se ocupou com problemas políticos, sociais, educacionais, econômicos e religiosos.
Considerado como um dos mais distintos e influentes representantes do empirismo inglês, Locke, no entanto, claramente mesclava o seu pensamento com certa dose de racionalismo.
Sua filosofia não consistia somente em uma teoria do conhecimento, mas também comportava uma doutrina ética e política.
Curiosamente, seus “Tratados sobre o governo” e sua “Carta acerca da tolerância”, apareceram anonimamente. Mas isso não significa, em absoluto, que ele não desse a devida atenção às doutrinas moral e política, pois, do mesmo modo, é sabido que ele dedicou muito tempo à preparação destas obras.
Na “Carta acerca da Tolerância”, Locke se propõe mostrar que a perseguição por motivos religiosos é ilegítima, quer seja realizada pelo Estado ou pela Igreja; que o Estado não deve se ocupar da salvação das almas; que a Igreja, qualquer que seja, não tem legitimidade para aplicar sanções e penas que ultrapassem a esfera espiritual; além do mais, todas as sanções são inúteis nestes domínios, em razão de não haver instrumento eficaz que garanta a adoção de uma determinada crença pelos indivíduos que são forçados a tal exigência.
Neste trabalho, então, propomo-nos a fazer uma breve análise sobre o princípio da tolerância, baseando-nos em sua epístola acima mencionada, onde procuraremos evidenciar o seu conceito, combater a sua antítese (a intolerância), bem como delinear a sua categorização filosófica.
Por oportuno, e a título de introdução, lançando um olhar crítico sobre as diversas épocas e os mais variados lugares do globo terrestre, com muita facilidade podemos constatar que, na história da humanidade, durante séculos, a questão da tolerância, ou da sua antípoda, a intolerância, foi tratada como a atitude que os governantes tinham para com as crenças e religiões minoritárias. Aliás, sempre se defendeu que a unidade política de um país dependia diretamente, ou em grande medida, da sua unidade religiosa, o que, de uma forma ou de outra, sempre levou os governantes a terem a necessidade de administrar a questão da tolerância, quer tivessem ou não uma clara consciência deste conceito, como assunto de estado da mais alta importância.
A tolerância, para Locke, era algo intrínseco à mensagem evangélica, assim como à própria filosofia. Para sustentar este ponto de vista e demonstrar a presença da tolerância na Bíblia, e mais especificamente no Novo Testamento, percebe-se com muita facilidade que ele faz uma espécie de separação entre a "letra" que mata e o "espírito da letra" que vivifica. Assim, a leitura da Bíblia deveria ser dirigida á luz da razão, através de uma depuração de tudo o que seja contrário à própria tolerância.
Logo no começo de sua carta, Locke recorre a um conceito bíblico de tolerância, qual seja, não é possível conceber um cristão sem caridade, cuja essência é a própria tolerância, conforme citação abaixo indicada:
“Desde que pergunta minha opinião acerca da mútua tolerância entre os cristãos, respondo-lhe, com brevidade, que a considero como o sinal principal e distintivo de uma verdadeira igreja”.[1]

Prerrogativas acidentais como antiguidade de tradição e esplendor ritualístico, reforma doutrinária e inconteste ortodoxia, caracterizam vinculação com o poder e a dominação temporais, mas, em nenhuma medida são legítimos indicadores de “sinais da igreja de Cristo”[2], como nos diz Locke.
Pois, sem demonstrar pureza de conduta, benignidade, caridade, boa vontade e mansuetude, conseguidos através do combate aos próprios vícios, ninguém poderá jamais se denominar verdadeiramente um cristão. Aliás, Locke nos adverte que não é através da pompa exterior, do domínio eclesiástico e, nem tão pouco, do exercício coercitivo da força das armas que se cumpre o papel da religião legitimamente cristã; mas por intermédio da exortação à virtude e à piedade, bem como do exemplo de conduta de todo aquele que se proclamar representante do Cristo, ou de qualquer divindade que seja, na Terra.
Não se deve jamais querer que, através do sofrimento e da tortura, uma alma seja salva. A única forma eficaz é por intermédio de uma amorosa admoestação dirigida a um coração sedento de luz e esperança; e que, efetivamente, esteja à procura do conteúdo de tal exortação a fim de que possa ser guiado até a saída da senda trevosa em que se encontre.
Então, não é meramente pela filiação a um culto religioso, qualquer que seja ele, que se evidenciará a sinceridade de um “fiel”; mas, pela sua silenciosa e interior aceitação doutrinária que lhe arrebata, indubitavelmente, o coração, fazendo de seus atos e de suas aspirações, autênticas expressões de uma sincera e irrepreensível devoção religiosa.
De igual modo, Locke nos faz dirigir a atenção para assuntos opostos aos temas religiosos como quando suas palavras nos chamam a atenção para as atividades e funções do governo civil.
As paixões como a impiedade, o orgulho e a ambição desmedida, inseparáveis dos assuntos humanos, podem levar a excessos deploráveis que se manifestam sob a forma de vilanias, as mais hediondas, e destruição de toda espécie.
Ora, as funções e os deveres do magistrado civil consistem na determinação imparcial de leis uniformes, bem como na sua preservação e manutenção, tendo em vista a posse e o usufruto de bens civis, quais sejam: a vida, a liberdade, a saúde física, as terras, dinheiro, as casas e muitos outros.
Em nenhum desses pontos detectamos a vocação direcionada aos cuidados propiciadores da salvação das almas, como sendo da incumbência da magistratura civil; tais como, por exemplo, quando em alguma condição ou estado após a morte, na qual elas enfim se deparem.
Claramente, qualquer um de nós é capaz de verificar, sem o menor esforço de raciocínio, o que compete ao poder civil e o que é reservado, especificamente, ao poder religioso. Baseando-se nessa constatação, Locke advoga, segura e inequivocamente, a imperiosa necessidade de separação entre os domínios da política e os da religião, defendendo que o Estado não deve influenciar nas opções religiosas dos cidadãos e, reciprocamente, a religião não tem o direito de pleitear legítima intervenção em assuntos de Estado. Desta forma, tanto a religião (enquanto domínio da salvação pela fé e o culto a Deus, conforme estabelecido previamente em forma de doutrinas e regras) quanto o Estado (como instância dos interesses civis), ambos têm domínios muitos específicos, distintos, nunca devendo, pois, ser tomados como coincidentes.
Apesar de possuírem algumas semelhanças, a salvação do individuo não tem nenhuma ligação com a sua utilidade e missão neste mundo ou com as suas relações sociais que o atrelam a direitos e obrigações civis; levando, por sua vez, a caracterizá-lo como um cidadão politicamente participativo na sociedade humana que tem a prerrogativa de, eventual ou rotineiramente, na privacidade de um templo consagrado pelos seus nobres propósitos e compreensíveis aspirações, cultuar o Deus de sua predileção em conjunto com outros que compartilhem os mesmos sentimentos e a mesma fidelidade religiosa.
A Igreja é, assim, uma sociedade livre de homens e mulheres reunidos voluntariamente para praticarem um culto comum ao Deus Todo Poderoso com a profícua finalidade de, em espírito solidário de auxílio mútuo, alcançarem coletivamente a salvação individual das suas almas.
Por sua vez, a sociedade é uma associação de indivíduos que, em busca da garantia mútua de sobrevivência, fizeram entre si um contrato de reunião ou convivência harmoniosa, a partir do esperado cumprimento de uma série de obrigações, em benefício do usufruto de uma correspondente série de direitos, com vistas à perpetuidade e a melhoria contínua da espécie, sob pena de, em havendo transgressões às normas previamente estabelecidas, a reparação deverá ser imputada de maneira justa, imparcial e proporcional ao delito cometido.
Mas, diversamente de uma sociedade, uma Igreja não pode exercer qualquer tipo de violência sobre os seus membros. Os seus únicos meios de ação são a admoestação compassiva e a advertência benfazeja. Além do mais, elas devem cultivar a tolerância entre si mesmas.
Aliás, Locke sustenta veementemente e sempre, que nenhuma crença pode ser imposta a qualquer outra, seja qual for a alegação ou argumento. Mais uma vez, não se deve abraçar uma crença religiosa, qualquer que seja, se for sob o jugo da dor e da opressão.
A crença em Deus e em Seus misteriosos desígnios, de determinada e convencionada maneira, assim como a aspiração à salvação da alma, são temas que geram questões de foro íntimo, podendo ser identificadas como o fruto de uma inequívoca luz interior, uma irrefutável evidência intuitiva e um puro e sincero desejo, respaldado apenas pelo cristalino reverberar de um coração apascentado e de uma mente que se pretenda isenta de enganos e de conflitos de qualquer espécie.
Mas (e nunca é demais alertar), não há meios de saber se os indivíduos acreditam ou não no culto do qual participam. Pois a Igreja somente pode fornecer a possibilidade da comunhão das crenças. Quanto à autenticidade dos propósitos, nunca se tem certeza absoluta.
Sendo assim, a intervenção do Estado, no âmbito da esfera religiosa, é limitadíssima e, por natureza, no mínimo, temerária. O Estado deve assegurar apenas a prática dos atos de interesse público, isto é, que estejam atrelados à manutenção da ordem e da paz sociais, assim como estimular a prosperidade econômica, com base no necessário fortalecimento da segurança civil.
Há, no entanto, limites à tolerância. E esses podem ser delineados com clareza e distinção como sendo o fanatismo e o ateísmo. Locke os aponta tornando evidente a tendência, paradoxalmente estranha à mensagem evangélica, ou dos católicos que, cegamente obedientes aos ditames papais, rivalizavam com rude hostilidade todos os que professassem outras religiões, ou dos protestantes, que, no ímpeto de defenderem a pureza de suas doutrinas reformadas, alimentam o ódio e revidam os ataques insanos dos católicos indignos de se dizerem verdadeiros cristãos. Quanto aos ateus, porque estes punham em cheque, perigosa e levianamente, os fundamentos mesmos da sociedade, já que não davam valor algum às promessas e aos acordos estabelecidos e homologados em forma de contrato entre os membros que a compunham.
Comprovadamente, John Locke estava à frente da mentalidade medíocre de sua época. Dono de uma rara visão de mundo, ele anuncia através de um importante documento em forma de uma despretensiosa carta remetida não somente aos seus contemporâneos, mas a todos os homens e mulheres de boa vontade, em todas as épocas futuras, o ideal que buscamos até hoje e que ainda não alcançamos, estando longe de (quem sabe?) atingirmos plenamente, um dia.
Ele admoesta, do início ao fim de sua epístola, que a única coisa que, em verdade, importa no cristianismo é a salvação das almas, o que depende exclusivamente da nossa conduta pessoal. Pois não seremos julgados por Deus em função de nossa brilhante interpretação das doutrinas religiosas, mas sobre se as nossas condutas foram ou não virtuosas, durante a nossa existência aqui na Terra.
Desta forma, de acordo com sua missiva, a tolerância é a essência da mensagem evangélica. Pois, então, a religião cristã deveria desprezar, sempre e em toda parte, tudo aquilo que engendra a intolerância, como a diversidade de opinião sobre a matéria da fé (as heresias); como o arraigado juízo de que se tem posse da verdadeira interpretação da palavra de Deus (a ortodoxia); bem como, também, a intrínseca ligação do Estado com a religião (teocracia).
Em conclusão, podemos ver que, em Locke, também é constatada a necessidade da tolerância por uma exigência política, como para possibilitar uma convivência harmoniosa em uma sociedade na qual, se a diversidade é inevitável, a unidade nesta diversidade representa o único instrumento conciliatório e mantenedor de um Todo que só o é pela reunião de suas inúmeras e distintas partes constitutivas.

Jorge Pi






[1] LOCKE, J. Carta acerca da tolerância. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (C. Os Pensadores), p. 3.

[2] Idem.











BIBLIOGRAFIA


LOCKE, J. Carta acerca da tolerância. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (C. Os Pensadores).

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