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segunda-feira, 26 de maio de 2008

O CONCEITO DA MORTE EM MONTAIGNE

Jorge Pi



Recolhido à torre do seu castelo, uma senhoria medieval situada entre Guienne e Périgord, perto de Bordeaux, o Seigneur de Montaigne, aos 37 anos de idade, escreve, entre outros trabalhos, os Ensaios, obra composta com argúcia e um estilo peculiar, em meio à dolorosa tristeza de ter perdido seu pai e, anteriormente, seu querido amigo Etienne de la Boétie, por quem nutria um sentimento verdadeiro da mais rara e sincera amizade (evento este sumamente amargo que lhe tornou a existência por demais melancólica).

A mais elevada expressão do Ceticismo, Montaigne toma a si mesmo como objeto de análise na medida em que redige os seus Ensaios. Conduzindo-se por uma pura tendência ao devaneio e à reflexão, como um desdobramento resultante de seu antigo e bom hábito de fazer anotações sobre as obras clássicas que lia, ele aborda lucidamente os diversos temas tratados num encadeamento progressivo e exaustivamente aprofundado.

Apreende-se facilmente, em Montaigne, uma contínua aproximação da sabedoria antiga, por suas inúmeras citações dos escritos de Plutarco, Juvenal, Terêncio, Horácio, Lucrécio, Virgílio, Pérsio, dentre tantos outros; e, em especial, Sêneca, este estóico romano que o influenciou fortemente com a idéia filosófica de que devemos nos familiarizar com o conceito da morte; sobremodo, alguém como ele que sempre conviveu com a dolorosa e quase insuportável ação de cálculos biliares (provável herança paterna) a tornarem-lhe a vida um pesado incômodo em um suplício interminável.

No capítulo XX, Livro Primeiro dos seus Ensaios, intitulado “De como filosofar é aprender a morrer”, ele inicia dizendo que, conforme Cícero (estóico), filosofar é se preparar para a morte.

De que quer nos alertar o filósofo francês, ao utilizar essa citação? Que podemos abstrair de tais palavras que, envoltas em aparência de simplicidade literária e sendo uma sintética e completa fórmula demonstrativa da tão almejada arte de ser feliz, são capazes de fazer abranger toda a sorte de reflexões pertinentes à condição de ser e de se saber ser humano?

Quando estudamos e meditamos, ou exercitamos o processo da reflexão profunda a respeito dos grandes problemas da existência, somos levados a sair de nós mesmos, do nosso mundo limitado e extático (repleto de conturbadas e intricadas aflições, apesar de recheado de eventuais, ilusórias e passageiras alegrias).

De forma semelhante a quando estamos nas imediações fatídicas da própria morte, ao penetrarmos espiritualmente as regiões mais sublimes da Sabedoria, somos lucidamente levados à real possibilidade de atingir o pleno conhecimento e a destemida compreensão da verdadeira natureza da morte.

Além do mais, como o próprio Montaigne afirma, toda sabedoria resulta em não se ter receio de morrer e nem tão pouco da própria morte, dada a sua patente e inegável inevitabilidade diante de nossa insensata e persistente tendência a fugir do mais ínfimo sinal de sua aproximação.

Assim, Montaigne demonstra uma sutil habilidade em conviver sabia e pacientemente com os duros golpes que o tempo invariavelmente nos reserva a todos. E não sem cicatrizes perenes e profundas, como quando a morte o privou da companhia de Etienne, seu maior amigo que, inclusive, em seu suspiro derradeiro (conforme está registrado no capítulo XXVIII, Livro Primeiro dos Ensaios, intitulado “Da amizade”), entregou-lhe sua biblioteca e seus papéis, como forma de mostrar sua afetuosa atenção e fraternal estima.

Se, como todos sabemos, a morte é o fim para o qual nos encaminhamos, ocorre que, para o homem vulgar, o natural é sempre estarmos esquecidos dela. E a vida se passa, em seu entendimento medíocre e embotado, como que em uma inusitada espécie de “inconsciência propositada”; como se nunca fosse passar, nos domínios do tempo.

Tão próxima e conhecida de nós, a morte é, no entanto, sempre causa de grande pavor e repulsa para a mente do homem mediano e irrefletido. Atribuindo a si, insensata e insistentemente, um falso estatuto de invulnerabilidade, ele se esbarra, no entanto, na sua finitude inconteste, espelhada no falecimento alheio, e vê diluída a sua tola e delirante pretensão de imortalidade.

Na verdade, são diversos e reais por demais os modos de sermos surpreendidos pela morte. Em tranqüila condição de vida, estamos sempre indo e vindo, apressados ou não, tristes ou alegres, animados ou desanimados; sem a menor indicação da iminência da morte.

No entanto, de repente ela nos toma de assalto, ou a um nosso familiar, ou a um amigo querido do nosso coração. E, então, dizemos que somos pegos como que de surpresa (sendo-o, de fato, ou não), e nos desesperamos em gritos de agonizantes vitimados pelo destino. Como se não fôssemos sabedores da existência da morte.

Por isso, é preciso nos preocupar antecipadamente com todas as suas nuances e todos os seus contornos para que, quando estivermos sucumbindo na armadilha do momento derradeiro, possamos celebrar a serenidade de quem sabe e entende a vez da perda e da separação definitiva, aliás, sabidamente inevitável.

Caso a morte fosse evitável, o normal seria nos escondermos dela. Mas, de que adianta, já que, covardes, corajosos, fracos ou fortes, todos somos subjugados igualmente aos seus domínios, no instante fatídico e derradeiro?

Portanto, não façamos o habitual. Enfrentemo-la firmemente em cada circunstância provável de sua manifestação. Pois mil alegrias podem ser mil portas de acesso à espera da morte. Cada circunstância em que nos encontramos carrega em si o potencial de ser a última em que exalaremos o derradeiro suspiro.

E a ninguém é dado saber onde a morte está à espreita, aguardando. Por isso mesmo, aliás, devemos esperá-la concretamente em toda parte e ocasião.

Ademais, refletir sobre a morte é o mesmo que refletir sobre a liberdade. Na mesma proporção em que se aprende a morrer, apreende-se a consciência da verdadeira liberdade. E aí nenhum mal nos acometerá; nenhum constrangimento e nenhuma tirânica sujeição. Pois ser livre é ser senhor da vida e da morte; e a morte é apenas o último instante da própria vida.

Com tudo isso, Montaigne diz ser um sonhador, não um melancólico. É que ele possuía uma imaginação laboriosa desde a sua adolescência, de quando se lembra que já então se via às voltas com tais pensamentos sobre a morte.

Já a partir daquela época, estando em meio a festas e diversões, pensava-se que ele se encontrava com o olhar distante e meditabundo, por preocupação com ciúmes e paixões, quando na verdade era sobre certo alguém que, logo após ter saído de uma outra festa, após deixar-se entregar ao ócio e aos prazeres mundanos, fora acometido por uma febre e morrera, fulminantemente.

O filósofo francês, na verdade, vivia cada instante de sua existência, como se já houvesse chegado sua última hora. Porém, não sob o domínio do medo ou da aflição, mas imbuído de uma profunda lucidez de quem não ignora a realidade. Aliás, ele afirmara que a coisa de que mais tinha medo no mundo era justamente o próprio medo. A paralisia estabelecida pela força coercitiva do medo em tudo nos afeta, sendo assim necessário que saibamos a cada instante, se não eliminá-lo, ao menos controlá-lo e dirigi-lo.

Temos medo quando, por espírito de defesa, inconscientemente ou não, fechamo-nos às possibilidades da realidade atual em que, na maioria das vezes, não se configura como propiciadora de perigo iminente nem tão pouco em simultânea realização de algum revés.

Então, sob o domínio do medo, deixamos de nos entregar plenamente às oportunidades de crescimento concreto e verdadeiro e não nos ocupamos devida e objetivamente com os nossos afazeres reais da ordem do dia. Até mesmo não usufruímos os nossos divertimentos, não nos fazendo presentes, em corpo e alma, mas projetando-nos, em razão de "pré-ocupação” descabida e inoportuna, a uma realidade que não existe no momento e que possivelmente nunca irá, de fato, existir.

Para Montaigne, o advento da morte não há de trazer em sua bagagem nenhum indício de surpresa caso haja, de fato, a constante e ininterrupta preparação para o seu advento. Sendo nula qualquer possibilidade de susto e de toda atmosfera desconcertante do imprevisto.

Em Montaigne, o sentimento da morte era constante, não como uma doentia mania de uma alma desequilibrada que se lança cegamente para a consumação do suicídio; mas como uma característica de lucidez de quem, vigilante e pró-ativo, está sempre envidando esforços para não perder a consciência do próprio corpo e dos pensamentos; da própria vida e das circunstâncias; da própria morte e da mortalidade.

E não apenas se ocupava a pensar, mas também dela falar constantemente; realizando, através da incomum capacidade de estar consciente de sua finitude, uma interação com o Universo, como “co-partícipe” do funcionamento das leis que regem a vida. Então, como “nascer é começar a morrer”, como disse Manílio[1], e se devemos primar por estarmos vigilantes e conscientes em todos os instantes de nossa vida cotidiana para nos considerarmos vivos, plenamente, assim também precisamos dar atenção à nossa própria morte, como natural e apoteótica conseqüência.

Estar consciente é antes de mais nada fazer valer o estatuto de ser, de participar, de compreender, de tentar, de buscar, de perder, de ganhar, de aprender. Enfim, de viver em harmonia consigo mesmo no intuito de não se fazer passar pelo que não é, numa busca legítima pela coerente manifestação de pensamentos, palavras e ações.

E, assim, cultivando-se a autenticidade na vida, encaminha-se para a autenticidade e a verdade na morte, ocasião em que não há dissimulação e fingimento, por não haver a menor possibilidade de se morrer mais ou menos, ou exatamente como outra pessoa. Morremos em nós mesmos, e apenas em nós mesmos; e numa experiência que constitui ao mesmo tempo em ausência e testemunho, factuidade e nulidade. Enfim, vivenciamos, solitários, a nossa própria morte.

A vida, por ela própria, não constitui absolutamente um bem nem um mal. Depende sempre do que dela fazemos.

Por isso, bem disse Montaigne que um dia apenas já nos basta para que possamos morrer, tendo visto tudo, pois cada dia é igual a todos os outros, em sua essencialidade última circunscrita em todo um emaranhado de diversidade repleta de combinações que repercutem no aparente novo.

Quanto quer que dure a nossa vida, no que diz respeito ao ciclo concepção-gestação-nascimento-vida-morte, ela é completa e íntegra em si mesma. Resta-nos, tão-somente, empregá-la bem para que sejamos dignos de uma boa vida assim como de uma boa morte.

Pois viver intensa e conscientemente um curto espaço de tempo vale mais do que viver por muito tempo sem, no entanto, celebrar a atualidade e a autenticidade de cada momento em plena e total doação de si para que seja íntegra e verdadeira a consciência de ser, em real completude.

No capitulo XIII do Livro Segundo dos Ensaios, intitulado “De como julgar a morte”, Montaigne nos diz que raramente pensamos ter chegado a hora de nossa morte, quando é certa a consumação final. Como se nos iludíssemos de propósito quanto à nossa pretendida importância diante do mundo, da vida, dos homens e até de Deus.

Imaginamos que o mundo sentiria por demais a nossa ausência e que faríamos falta real na ordem das coisas e dos homens. Mas isto, em verdade, é um engano. O mundo fica e a vida continua. Os nossos parentes e amigos choram pela nossa partida, mas logo enxugam as lágrimas e seguem seus caminhos sem nós.

Nós somos o nosso próprio referencial, sempre. Estimando-nos demasiadamente, incorremos no erro de inferir com imprecisão aquele momento que, de todos, é para nós o mais certo, apesar de não sabermos quando irá chegar.

Sendo assim, o estado de ânimo de uma pessoa no momento de sua morte pode tornar obscura a iminência certa e fatal, levando à ilusão da continuidade da vida. Pois o nosso instinto de sobrevivência sempre nos nutre da esperança de não morrer, de escapar... Como se fôssemos eternos e a morte fosse tão-somente um pesadelo que se desvaneceria ao nos acordarmos de um sono ruim e tempestuoso.

Segundo Montaigne, é de admirar que, apesar de a morte ser a mesma para todos nós, haja tantos que não sabem acolhê-la devidamente.

O fato é que quando ela vem, tudo muda à nossa volta, como se um mascarado revelasse a face nua e verdadeira, substituindo a feição de horror pela da simplicidade.

E, ao finalizar suas reflexões no capítulo XX dos Ensaios, Montaigne, reportando-se àquele tipo de atmosfera criada artificialmente e que retira toda a dignidade do sagrado instante da morte, dirige-nos a todos o seguinte pensamento: “Feliz é a morte que nos surpreende sem que haja tempo para semelhantes preparativos” (pág. 49).

Corroborando a agudeza reflexiva encontrada no legado deixado a nós, por Montaigne, podemos concluir que os mais apropriados preparativos para a morte não deveriam ser tomados nas enfermidades e nas adversidades, acidentais ou não, de nossa conturbada e improvisada existência.

Mas deveríamos buscar em cada momento de nossa vida a realização dos nossos afazeres como se estivéssemos nos instantes derradeiros. Pois, assim, não agiríamos negligentemente e não desperdiçaríamos o tempo que nos cabe para realizarmos nossa missão na vida, seja ela qual for.

Assim, o conceito da morte em Michael de Montaigne, ao tempo em que nos instiga a sermos responsáveis pela administração da nossa própria vida, aponta-nos sabiamente para a senda que nos distancia da escravidão e nos direciona inevitavelmente para aquilo a que mais almejamos: a destruição das correntes do medo, mediante a aquisição da verdadeira e inalienável Liberdade.





[1] MONTAIGNE, Michael de. Ensaios. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p. 48.

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