.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

A REALIDADE DIVINA E A PLENITUDE INTERIOR EM AGOSTINHO

Jorge Pi

A vida de Santo Agostinho pode ser divida em duas partes: antes e depois da conversão. Sendo, esta última, o marco principal a partir do qual ele se inscreve nos anais da história da humanidade. Canalizando toda sua energia no serviço da fé cristã, ele também buscou compreender a verdade pela via da razão. Sempre com o dualismo de corpo e alma em ininterrupto combate. No caminho da fé, muitas vezes, para expressar o que seria inexprimível, a utilização de metáforas acabou por ser a solução. Entender Agostinho pressupõe penetrar em seu mundo interior. Tarefa das mais difíceis, pois ler nos sinais exteriores da vida comum já é por demais exaustivo e desanimador, tanto mais penetrar em tamanha escuridão, portando apenas pequena fagulha de lucidez racional. Necessário re-trilhar a senda interior da mística relação agostiniana com o divino para comungar com algum prenúncio de possível entendimento.

As Confissões constituem uma síntese perfeita da filosofia de Agostinho. Até mesmo em nossos dias, este livro se mostra bastante atual. Nele é narrada, com extrema desenvoltura de quem sabe bem sobre o que expõe, a dura experiência humana, no que concerne ao conflito entre a finitude e infinitude, o vício e a virtude. Há, ademais, em toda a obra, um fio condutor de delicada esperança, bem como contínuas e evidentes alternações de sentimentos opostos.

Nesta obra, para além da direta exposição das misérias e desregramentos que podem ocorrer na vida de um ser humano, a indicação sutil e constante de que, apesar da evidência da corruptabilidade oriunda da herança inevitável do pecado original, há que se reconhecer a ação redentora e ininterrupta do Espírito Santo que, através da Graça da Providência Divina, opera constantemente naquilo que corresponde, no homem, à “imagem e semelhança de Deus” (Gen. 1,27), em sua realidade mais profunda e mais interna, oculta, no entanto, de sua própria consciência e intrinsecamente mergulhada em sua tão desencontrada subjetividade.Isto porque há no homem um eu único que, no entanto, configura-se como dois: um, exterior (pecador, miserável, finito, malicioso, perturbado, bestial), e, outro, interior (santo, afortunado, infinito, puro, sereno, divino).

Cabe, então, ao homem através da Graça, a tarefa de fazer render-se e adequar-se ao eu interior, o outro eu, o exterior, tão próximo de nós, tanto quanto distante de nossa desconhecida plenitude interior, por caracterizar-se como incansável distanciador da realidade divina, privando-nos, assim, da tão almejada salvação, dádiva maior já nos ofertada e reservada por Jesus, o Cristo, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

É o que se vê logo no início do primeiro livro:

“O homem, fragmentozinho da criação, quer louvar-Vos; - o homem que publica a sua mortalidade arrastando o testemunho do seu pecado e a prova de que Vós resistis aos soberbos. Todavia, esse homem, particulazinha da criação, deseja louvar-Vos. Vós o incitais a que se deleite nos vossos louvores, porque nos criastes para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós”. (Confissões. Livro I, l, Invocação ou Louvor?, pág. 37).

Agostinho, ao se referir ao homem como “fragmentozinho” e “particulazinha”, está se reportando ao aspecto finito do nosso ser, este que age, pensa, peca, arrepende-se, erra, busca o acerto, perambula pelas vias da corruptabilidade, consome-se até as últimas forças perseguindo saciar os apetites carnais, no intuito, entretanto, de alcançar a completude, quando o que consegue, somente, é se atolar, mais e mais, no lamaçal fétido e repugnante da dor e da desgraça, acumulando remorso após remorso, ou mesmo exercitando o emudecimento da voz da consciência.

Ao mesmo tempo, ao dizer “nos criastes para vós” (título do segundo capítulo do primeiro livro), o Bispo de Hipona revela-nos, ocultando-nos, a referência a algo em nossa natureza que nos aproxima da Natureza incorruptível de Deus, por uma correspondência ativa de semelhança interna, oriunda da realidade divina, no processo consciencial infuso no âmago de toda e cada criatura humana.

Isso sempre é perceptível nas diversas exaltações que Agostinho faz a Deus, reconhecendo a grandeza Divina dentro de sua pequena existência de ser humano. É o júbilo tomando conta de um grande sentimento religioso que o Santo expressa em seu livro, pelo qual compartilha sua vida diante do desafio do livre-arbítrio e, ao mesmo tempo, a auto-entrega à graça divina, em demonstração de confiança, exortando-nos, desta maneira, a sairmos de nossa pequenez com o auxílio da força de Deus.

No título inicial do primeiro livro, “Invocação ou Louvor?”, está clara a encruzilhada em que Santo Agostinho se vê tomado, como se diante de duas direções opostas, mas que hão de levar, no fim, ao mesmo destino. E por decisão própria, ao escolher a invocação, ao invés da Louvação, ele escolhe a via interna de conexão com o Divino, ou a via da crença que se encaminha ao encontro do conhecimento da verdade.

O Bispo de Hipona não se deixava paralisar diante da barreira da vergonha de se reconhecer mísero e pecaminoso nas entranhas do eu que, superficial, interfere e corrompe a possibilidade de uma caminhada tranqüila e isenta de obstáculos: Se “Deus está no homem” é porque “o homem está em Deus” (Confissões. Livro I, 1, Invocação ou Louvor?, Pág. 37).

Em Agostinho há uma espécie de dualidade platônica cristianizada, dada à constante presença da relação entre a miséria humana e a grandeza Divina, tornando-se uma indelével marca na Igreja Católica, por toda a Idade Média. Sendo sempre o embate entre o corpo e a alma, um infindável tema de exaustíveis querelas.

No capítulo sexto do livro primeiro, intitulado “No alvorecer da Vida”, Agostinho se reporta ao “eu, pó e cinza”, tirado do livro bíblico do Gênesis, no capítulo décimo oitavo, versículo vigésimo sétimo, aludindo claramente àquela parte de nós que não fora criada à imagem e semelhança de Deus, mas como sendo constituído de finitude e limitação. E por todos os capítulos dos treze livros de suas Confissões, este será o eu ao qual, invariavelmente, irá se referir, porém sempre o fará em tom de negação, condenação e anulação, não como ato de um suicida insano, mas como o de um ousado libertador. A ousadia em querer, ou desejar firmemente, vencer as ilusões exteriores, em exaustivo combate consigo mesmo.

A idéia de culpa também é muito presente. Somente confessa aquele que se sente culpado com relação a alguma coisa, sendo o arrependimento o objetivo almejado. E o que sobra ao homem pecador confessar senão as suas fraquezas?

Cristão, Agostinho abre a todos nós o caminho trilhado para a conversão, como um incentivo e um alento a todos os que se sentem perdidos e confusos. Com a proposta de trazer o apoio da divina graça ao espírito perturbado, Agostinho divide sua experiência com todos nós, revelando-nos a infinita misericórdia daquele que o salvou: o Cristo Jesus. É o seu profundo agradecimento a Deus, por ter-lhe trazido à Luz da Divina Graça, o desvelar os segredos mais recônditos de sua consciência, como um autêntico testemunho de amor pelo Criador.

Assim são rememoradas todas as etapas de sua vida, mesmo aquela em que não é possível reconstituir, a não ser pelo rememorar daqueles com os quais compartilhava a escuridão pessoal e inconsciente de ser e não saber que se é: a primeira infância.

Implacável, Agostinho é, ao mesmo tempo, lúcido ao apontar para atos aparente e convencionalmente naturais e carregados de uma atmosfera de pureza, como o mamar no seio materno, não por considera-lo, de per si , pecaminoso, mas por vislumbrar, mesmo aí, a natureza corruptível em estado embrionário, a seduzir e inspirar, usando-se da própria pureza, toda a malícia em potencial que já se compõe em tendência subliminar. Um certo exagero de homem religioso e cristão? O fato é que o eu exterior está em formação, a começar pela infância e, logo após, na adolescência. E como pelos frutos é que se conhece a árvore, assim também, a árvore, em potência, está toda ela já na semente e porque não considerar também, os frutos, mesmo em estado de latência?

Numa interminável catarse, o que Agostinho pretende não é tanto evidenciar os erros do pecador, o que, por si mesmo, é gritantemente manifesto e perfeitamente perceptível em nossas vidas. Porém, o intuito é outro: ter consciência crítica da parte de nós, humanos, que nos priva da Realidade Divina. E como o mal é apenas a ausência ou a privação do Bem, ou de Deus, ao exercitar a conscientização do nada como nada sendo, há que restar a percepção clara, lúcida e inequívoca da plenitude interior no mais profundo do ser (humano). Por isso, a incansável utilização do método de buscar em nós, o que há de essencialmente divino, através da não menos incansável negativa e decisiva recusa do que, em nós, não presta, moralmente.

Há como que uma bondade insuspeita em todo ato de combate ao pecador, em nós. Isso porque, ao buscar transformação naquilo que tende naturalmente ao mal, na natureza humana, equivale a querer, por redenção, tornar o Bem o único senhor e dirigente; o que condiz com a própria Vontade de Deus para com a sua criação: a de que seja instaurada, sempre e sempre, as faces da Perfeição por toda a parte, tempo e consciência.

Nas Confissões, uma outra leitura também é possível fazer. Uma apologia pessoal de Agostinho, já que este tinha que enfrentar diretamente seus inimigos doutrinais, os chamados “hereges”, os quais sempre lhe lançavam ao rosto sua vida desregrada da mocidade. Humilde, ele vence os sarcasmos de seus perseguidores, entregando-lhes sua autobiografia, sendo esta a melhor maneira de se defender, calando de uma vez por todas os seus inimigos, pois, nele, nada mais estaria escondido, não havendo mais o receio à exposição pública sujeita a qualquer questionamento e muito menos qualquer tipo de calúnia. Como um bom advogado de si mesmo, adiantou-se ao que poderiam fazer consigo e fê-lo primeiro. Pela sua ação, calou os que tentavam caluniá-lo e assim se justifica: “Não me caluniem os soberbos, porque eu conheço bem o preço da minha redenção” (Confissões. II Parte. Livro X. Cap. 43).

Hábil político, o bispo de Hipona, em muito, dificultara as atitudes de seus adversários. Não por acaso que se tornara bispo. Outrora professor de retórica, a arte do bem falar, de bem saber empregar as palavras corretas na hora certa, nas Confissões, assume posturas que bem revelam sua habilidade de saber lidar com os diversos problemas que lhe apareciam.

Os dogmas da Igreja Católica foram teoricamente fundamentados por Agostinho. Notemos que antes de sua conversão, Agostinho de Hipona conhecera os lados de seus adversários e, após convertido ao catolicismo, pode muito bem explorá-los.

Porém, quando Agostinho combate os maniqueus (e sempre irá fazê-lo), ele quer, de fato, contrapor-se à idéia de supervalorização do eu exterior que, numa tentativa de torná-lo o mais possível polido, instruído e educado, todos nós cometemos o grave erro de inverter o seu papel de veículo para de condutor, enquanto o eu verdadeiro, o interior, é negligenciado e deixado à margem ou ignorado.

“Grande Abismo é o homem, Senhor!” (Confissões. Livro IV, cap. XIV). Que dizer de tal pensamento que define tão bem a natureza do homem? Que é o homem? A esta indagação, socorre-nos, de pronto, a nossa memória, a nos apontar as pernas, os braços, o tronco, a cabeça, os trejeitos denunciadores e característicos da imagem e personalidade de determinado sujeito. Mas, que, de fato, é o homem, em sua essência última, que possamos nos dar por satisfeitos em razão mesma da elucidação porventura consumada? O homem é um abismo que se debruça por sobre si mesmo e cai num abismo maior do que ele próprio: Deus.

Que profundidade inatingível é esta a se confundir com a profundidade maior à qual chamamos Deus? E, numa dolorosa depuração dos movimentos infinitos daquilo que conhecemos como vida, desdobra-se em vertiginosa estupefação, ao se exprimir em vontade carnal. Quão pequeno, no entanto, é o homem? Na mesma proporção em que incomensuravelmente grande seja sua abismal indagação a respeito de si.

No livro IV, capítulo 15, Agostinho indica uma definição de belo como “o que agrada por si mesmo” e de conveniente como “o que agrada pela sua acomodação a alguma coisa”.

            Assim, convém que sejamos amigos dos nossos amigos. No entanto, na medida em que esta nossa filia nos enreda em atos errôneos, mesmo em contraposição ao que nos incita a sutil voz consciencial, sinalizando-nos o desvio vetorial na senda do crescimento moral, faz-se urgente tomar tento de que a verdadeira harmonia das proporções simétricas sempre está nas dimensões espirituais da vida e não na material ou nas formas corporais.

            Mais do que a aparência, Agostinho faz-nos entender que o belo encontrado nas exterioridades carnais e mundanas é, antes de tudo, transitório e traiçoeiro. O que hoje é belo, em manifestação corpórea, amanhã poderá, com grande probabilidade de acerto, não expressar senão deformidade e decadência. E nas ilusões do tempo que passa, deixamo-nos envolver pelas paixões, sempre em busca de preencher vazios existenciais sem, no entanto, atingir tal intento. Pois de Deus é que vem toda a Vida e toda a Graça. Sem graça sempre acaba ficando todo o belo que seja percebido nas coisas por elas próprias; ou em tudo aquilo que convém categorizar como sendo belo, quando, tão somente está belo. Porque tudo o que é belo, o é porque vem de Deus.

Nas Confissões, podemos observar a profunda intimidade agostiniana com a Bíblia, em que ele se mostra grande conhecedor da mesma, tendo-a presente em sua vida diária, pois escrevia sempre embasado em sua disciplina religiosa.

De um lado há o temor a Deus. De outro, a confiança na Sua infinita misericórdia. O autor sente-se mesmo como filho amparado pelo Pai e nisso encontra forças para tudo enfrentar na vida. O que fica bem nítido na leitura é a grande fé que acompanha esse Doutor da Igreja. A familiaridade com o divino fica explícita. Também é um livro em que a exortação à luta interior tem um grande foco, pois, sem esta, todas as outras nada valem. Nesse sentido, Agostinho chega a fazer drama ao contar suas experiências estando longe e perto do bem. De outra perspectiva, pode ser sua obra olhada como incentivadora no que diz respeito aos que se sentem perdidos, angustiados, cansados enquanto descrentes a vagar por mares sem ancoradouro. Poeta, o bispo de Hipona não perdia de vista os sentimentos mais profundos da alma humana, exortando a todos a se escutarem, para encontrarem aí a voz de Deus: “Ouça, pois, vossa voz em seu interior, quem puder!” (Agostinho. Confissões. II Parte. Livro XI. Cap. 9).

            Assim como o que buscamos após a tempestade, afinal, é a bonança, assim também se percebe que Agostinho consegue nos presentear com essa quietude encontrada após as diversas tormentas pelas quais passa a alma humana. Pois ele, ao falar de si, tratou de seu elo comum com toda a humanidade. Por uma outra ótica, generalizou as condições intrínsecas a cada um de nós, no decorrer da história da humanidade. O que em Agostinho se fez teoria da graça divina, e isso ele conseguiu demonstrar por sua própria conversão, provoca também indagações para uma auto-reflexão, pois também trabalhou na esfera do livre-arbítrio, a capacidade de cada qual optar pelo que quer, mexendo com a responsabilidade individual. O que pretende é a exposição daquilo que tanto preza o Evangelho: o arrependimento dos pecados e a misericórdia de Deus, entrelaçadas nas suas doutrinas da graça e do livre-arbítrio. Confiante, entrega-se a Deus:

“Só na grandeza da vossa misericórdia coloco toda a minha esperança. Dai-me o que me ordenais e ordenai-me o que quiserdes” (Agostinho. Confissões. II Parte. Livro X. Cap. 29)

Nas Confissões, Agostinho não somente se revela teólogo e filósofo, submetendo, naturalmente, as indagações filosóficas ao santo ofício da fé, como também revela, paulatinamente, a senda que percorreu para chegar a ser o que é. Singular e autêntico, fala da sua própria experiência como homem finito e pecador bem como de sua ligação com a Realidade Divina e sua Plenitude Interior.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

AGOSTINHO, Stº. Confissões. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 2000.


Nenhum comentário: