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quarta-feira, 17 de junho de 2009

Fichamento: O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2002, 168-207 p.

Fichamento: Aventura e rotina - O autor derruba a tese de que a característica essencial do povo brasileiro é a cordialidade e sustenta o extremo oposto. Se tomarmos como exemplo os casos clássicos dos Cabanos, dos Quilombos, dos Canudos e, mais recentemente, o dos desolados Yanomami, na verdade, facilmente constatamos que o processo de formação do povo brasileiro foi altamente conflitivo, em estado de guerra latente, por vezes cruel e sangrento. Aliás, conflitos interétnicos existiram desde sempre entre os nativos. Mas, a partir de 1500, a situação muda quando surge o avassalador elemento do dominador branco europeu. O projeto jesuítico se configurou, no início da colonização lusitana, como uma alternativa para a formação de um outro tipo de sociedade, diferente daquela que surgia na área de colonização espanhola e até mesma portuguesa. Porém, em seu grande triunfo iria residir a semente de seu próprio aniquilamento. Tornando-se a maior proprietária urbana, em 200 anos de ação catequética, a Companhia de Jesus angariou a inveja de opositores que se locupletaram como novos proprietários dos bens jesuíticos, bem como dos próprios indígenas, que, apesar de serem declarados livres foram escravizados como os negros. Outrossim, a guerra dos Cabanos é o exemplo mais claro de enfrentamento interétnico. Nela, a população antiga da Amazônia (neobrasileira, porque já não era indígena) se degladia com a estreita camada dominante, fundamentalmente luso-brasileira. Os cabanos ganharam muitas batalhas, mas viviam o antiprivilégio dramático de não poder perder batalha alguma. O que, por fim, vem a ocorrer. Palmares, por seu turno, é o caso exemplar de Quilombo. Negros fugidos dos engenhos de açúcar organizam-se em forma de economia solidária em uma sociedade alternativa igualitária. Não obstante, sua destruição torna-se inevitável seja para reaver os escravos fugidos ou para inibir novas fugas. Canudos é um terceiro exemplo de conflito de classe havido no Brasil, tendo sido composto de um lado por Conselheiro e seus fiéis seguidores subversivos ao poder vigente, ex-lavradores sem-terra e até jagunços, e, de outro, autoridades locais, fazendeiros e as forças armadas, em suas várias “versões”, até o conflito final no qual só sobraram “(...) apenas: um velho, dous homens feitos e uma creança (...)” (Cunha, 1945:606, 611). Em suma, o que há em comum em todos os conflitos é, de um lado, a insistência dos oprimidos em preservar o espírito de luta diante do destino sempre revés, e, por outro lado, a perpetuação da institucionalidade em que se baseia o latifúndio. No plano econômico, o Brasil é fruto da implantação e da interação de quatro ordens de ação empresarial: a principal delas foi a empresa escravista, a segunda foi a comunitária jesuítica, a terceira (de menor rentabilidade) foi a de produção de gêneros de subsistência e de criação de gado e, sobre estas três esferas empresariais, pairava uma quarta (a mais lucrativa para a coroa portuguesa), constituída pelo núcleo portuário de banqueiros, armadores e comerciantes de importação e exportação. No entanto, muito importante também era uma contraparte às cúpulas empresariais: o patriciado burocrático, ou seja, uma burocracia civil de funcionários governamentais e exatores, militares, eclesiásticos, sempre essencialmente solidária frente aos outros corpos da sociedade, apesar de suas particulares divergências. Essa classe dominante empresarial-eclesiástica atuou também como reitora do processo de formação do povo brasileiro tal qual se configura em nossos dias, como entidade cívica e politicamente subserviente e mão-de-obralesca. Até porque “(...) o objetivo jamais foi o de criar um povo autônomo, mas (...) fazer surgir como entidade étnica e configuração cultural um povo novo, destribalizando índios, desafricando negros, deseuropeizando brancos” (Ribeiro, 2002: 179). Avaliação – Darcy Ribeiro, em fecunda e extensa consulta à obra Tratados da terra e gente do Brasil, 1584, do padre Cardim (que ele considera um dos primeiros altos intelectuais brasileiros), que fora reitor do Colégio da Bahia, finaliza por concluir que o maior fracasso foi o stalinismo jesuítico, que tentou formar nestas terras um socialismo precoce e, por isso mesmo, inviável; mas, apesar de bem sucedidos, seus opositores também fracassaram, uma vez que “não sendo um povo para si na busca de suas condições de prosperidade, permanece sendo um povo para os outros” (Ribeiro, 2002: 192).
A urbanização caótica – O Brasil nasceu como uma civilização urbana, com conteúdos rurais e citadinos com funções diferentes, mas complementares. No primeiro século, fundaram-se Salvador, Rio de Janeiro e João Pessoa; no segundo, São Luiz, Cabo Frio, Belém e Olinda; no terceiro, São Paulo, Marianga (MG), e Oeiras (PI); no quinto século, a rede de cidades explode, Brasil a fora. No curso desses séculos, os Holandeses enriqueceram Recife; as minas, Ouro Preto e outras cidades do ouro; o açúcar, Pernambuco e Bahia; a independência trouxe lusitanos ligados ao comércio, como agentes de empresas inglesas; a Guerra de Secessão nos Estados Unidos fez crescer São Luiz; a abolição encheu as cidades do Rio e da Bahia de núcleos chamados africanos, que se desdobraram nas atuais favelas; a crise de desemprego europeu nos mandou 7 milhões. A classe alta urbana era composta de funcionários, escrivãos e meirinhos, militares e sacerdotes, bem como negociantes. Todos esses, no entanto, considerados “de segunda”, em relação aos senhores rurais, convictos de sua superioridade. Portanto, uma camada intermediária de brancos e mestiços livres, todos pobres à sombra dos ricos e remediados. A economia extrativista criou os portos de exportação de borracha da Amazônia ao lado de vilas e cidades auxiliares. No século XX, teve lugar uma urbanização caótica provocada pelo êxodo rural. São Paulo e Rio de Janeiro passaram a ter o dobro da população de Paris e Roma. Esse crescimento explosivo entra em crise em 1982.
“Em nossos dias, o principal problema brasileiro é entender essa imensa massa urbana que, não podendo ser exportada, como fez a Europa, deve ser reassentada aqui. Está se alcançando, afinal a consciência de que não é mais possível deixar a população morrendo de fome e se trucidando na violência, nem a infância entregue ao vício e à delinqüência e à prostituição” (Ribeiro, 2002: 200-201).
O impulso inicial para a moderna industrialização no Brasil se deu no Governo Getúlio Vargas, com a criação da Companhia Siderúrgica Nacional em Volta Redonda, bem como a repatriação das jazidas de ferro de Minas Gerais (um acordo com os americanos, em plena Grande Guerra, em troca do envio de tropas e matérias primas aos Aliados). A Vale do Rio Doce pôs nossas reservas minerais a serviço do Brasil, no mercado mundial.
“Essa política de capitalismo de Estado (...) provocou sempre a maior reação por parte dos privatistas e dos porta-vozes dos interesses estrangeiros (...) quando Getúlio Vargas se prepara para criar a Petrobrás e a Eletrobrás, uma campanha uníssona de toda a mídia levou seu governo a tal desmoralização que ele se viu na iminência de ser enxotado do Catete. Venceu pelo próprio suicídio, que acordou a nação para o caráter daquela campanha e para os interesses que estavam atrás dos inimigos do governo” (Ribeiro, 2002: 202).
JK desencadearia uma industrialização substitutiva, abandonando a do Estado para a Iniciativa Privada, mais especificamente, o Capital Internacional, no ramo automobilístico, naval, química, mecânica, com todas as instalações em território nacional. Tal Revolução Industrial Nacional se concentra no estado de São Paulo. Tanto, que esse estado se tornou um pólo de colonização interna, com crescimento exorbitante, eclipsando o desenvolvimento industrial de outros estados. “A tarefa das novas gerações de brasileiros é tomar este país em suas mãos para fazer dele o que há de ser, uma das nações mais progressistas, justas e prósperas da terra” (Ribeiro, 2002: 204).
“(...) a coisa se tornou mais complexa porque as instituições estão perdendo todo o seu poder de controle e de doutrinação. A escola não ensina, a igreja não catequiza, os partidos não politizam. O que opera é um monstruoso sistema de comunicação de massa fazendo a cabeça das pessoas. (...) Algo tem que ver a violência desencadeada nas ruas com o abandono dessa população entregue ao bombardeio de um rádio e de uma televisão social e moralmente irresponsáveis, para as quais é bom o que mais vende, refrigerantes ou sabonetes, sem se preocupar com o desarranjo mental e moral que provocam” (Ribeiro, 2002: 207).
Eis, aliás, uma belíssima provocação!
Jorge Pi

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