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terça-feira, 10 de junho de 2008

PEQUENA ANÁLISE DA “MEDITAÇÃO PRIMEIRA” (René Descartes)

Jorge Pi














A partir dos três pontos duvidosos refletidos na Quarta Parte do Discurso do Método, quais sejam, a desconfiança nos sentidos, o raciocínio da matemática e o argumento do sonho, René Descartes constrói a sua Primeira Meditação, intitulada “Das coisas que se podem colocar em dúvida”, pautando-se no estabelecimento da dúvida hiperbólica (radical), do dilema de um Deus enganador e do gênio maligno e ardiloso.

Logo no início da meditação, ele constata que falsas opiniões são tidas como verdadeiras e que princípios mal assegurados são, por natureza, duvidosos e incertos; chegando à compreensão de que é necessário, então, desfazer-se de todas as opiniões sedimentadas e começar tudo novamente desde os fundamentos, para bem estabelecer as bases das ciências; pois, se há algum tempo nutria a compreensão de que seria preciso haver maturidade intelectual (não, cronológica), que possibilita a aptidão para a execução de tal empreendimento, agora tinha a inequívoca convicção de que era chegado o tempo.

Com o espírito livre de cuidados materiais e em pacífica solidão, ele resolve dedicar-se à destruição de suas antigas opiniões, bastando-lhe apenas o menor motivo de dúvida para levar a cabo a sua rejeição, a partir dos princípios básicos, fazendo, em conseqüência, ruir todo o edifício. Tal dúvida não seria de natureza vulgar, mas tinha um caráter hiperbólico, isto é, sistemática e generalizada, pois se é certo que algo pode nos enganar uma vez, tanto mais certo é que nos engane todas às vezes, sendo este o primeiro grau da dúvida, construído na forma do argumento do erro do sentido. Assim, a certeza e a dúvida morais são insuficientes para o estabelecimento das ciências.

No entanto, apesar de os sentidos nos enganarem, às vezes, há, inegavelmente, muitas coisas indubitáveis como o ato de nos situarmos em algum lugar, sentindo o corpo como sendo nosso; pois, ao contrário do que ocorre com os espíritos extravagantes, fracos, insensatos, que se tomam pelo que não são, não podemos negar a existência de tudo que nos rodeia. Apesar de que a prática de nos pautarmos em dados empíricos é, de fato, uma insensatez.

Por outro lado, enquanto homem, Descartes sabe que pode dormir e sonhar que está acordado e consciente, quando, em verdade, apenas dorme. Há, então, uma absoluta falta de critério para distinguir o sonho da vigília, tendo-se por base as sensações. No máximo, haveria uma certeza moral. Assim, é cabível que se duvide da existência do mundo.

Com efeito, seja considerada a probabilidade de estarmos dormindo e tudo o que percebamos sejam apenas falsas ilusões. Que nada seja, tal como nos pareça. Ainda assim, essas nossas percepções oníricas seriam, sim, indicadoras de que as coisas, assim percebidas, são semelhantes às reais e verdadeiras, não sendo imaginárias, mas, de algum modo, verdadeiras e, de fato, existentes. Mesmo os pintores, quando pincelam formas estranhas e até extraordinárias, não constroem nada de natureza inteiramente nova, mas são formados arranjos compostos a partir de elementos singulares pré-existentes. E mesmo que consigam como resultado uma pintura completamente estranha, ao menos as cores das tintas utilizadas teriam de ser verdadeiras.

Ademais, ainda que as coisas gerais possam ser imaginárias, há sempre coisas mais simples e mais universais, formadas por imagens que residem em nosso pensamento, quer sejam fictícias ou reais. Assim são as coisas materiais, bem como sua configuração, sua quantificação, sua localização e sua duração, dentre outras considerações.

É desse modo que a Física, a Astronomia, a Medicina, bem como as demais ciências direcionadas às coisas compostas são muito duvidosas e incertas. Enquanto que a Aritmética, a Geometria e as outras ciências que tratam de coisas muito simples e gerais, destituídas que são do comprometimento estrutural pela sua necessária manifestação no mundo material, possuem algo de certo e indubitável. Pois, em sonho ou em vigília, dois mais três resultarão sempre o número cinco e o quadrado sempre terá quatro lados; não sendo nunca possível que haja falsidade e incerteza em tal juízo.

Descartes, então, no caminho da dúvida hiperbólica, revela-nos a sua esquematização referente à existência de um Deus onipotente, criador e enganador, que nos ilude com a aparência de realidade nas coisas que vemos e julgamos que sejam tais quais as divisamos. E como é possível se enganar até naquilo em que se tenha maior certeza, é também provável que esse Deus desejasse que houvesse engano mesmo no âmbito dos rudimentos da lógica matemática. Mesmo considerando-O como Sumamente Bom, persiste o fato de que, eventualmente, enganamo-nos.

Ainda assim, há quem duvide da existência desse Deus tão poderoso, mas não que as outras coisas sejam certas e definidas. Considerando que assim seja, qualquer que fosse a origem do ser, ou o destino, ou a fatalidade, ou o acaso, ou até uma contínua série de conexão das coisas, quanto menos poderosa a fonte, tanto mais continuadamente imperfeita e falível seria. A partir disso, Descartes considera que, sem ser leviano e com muita maturidade no pensar, não há nenhuma opinião herdada de outrora que não seja passível da dúvida. Conseqüentemente, faz-se necessária a suspensão do juízo sobre esses pensamentos para que seja alcançado algo constante e seguro nas ciências.

E é preciso ser vigilante para não tornar a sucumbir às velhas opiniões, pois, de tão familiares, retornam ao pensamento, como senhoras absolutas. É necessário o exercício constante da dúvida metódica, por precaução. Por essa razão, fingindo que todos esses pensamentos são falsos e imaginários, anular-se-á o peso da influência dessas opiniões levando, com segurança, ao conhecimento da verdade.

Descartes, em seguida, propõe um elemento artificial, com o qual busca abalar as falsas crenças. Fala de um certo gênio maligno, com o intuito de reforçar a radicalidade total da dúvida metódica. Pensa em tudo o que existe, na exterioridade, como sendo ilusão e engano construídos por esse gênio com fins de surpreender e fisgar nossa credulidade. Imagina-se não tendo o corpo e os sentidos e, ainda assim, dotado com a crença errônea de possuí-los. Nessa linha de pensamento, entende não poder, de fato, chegar ao conhecimento verdadeiro, mas, ao menos, possibilita a suspensão do juízo. Desta maneira, pretende, e consegue, escapar dos ardis desse gênio enganador.

Tal empreendimento é árduo e trabalhoso, pois existe uma tendência natural ao retorno à vida ordinária. Acostumada que está, a natureza humana, às falsas crenças e opiniões duvidosas tidas como verdadeiras, há sempre a reincidência à letargia viciosa e debilitante do falso conhecimento, sendo mais difícil o retorno à vigília laboriosa e dignificante do verdadeiro conhecimento. Assim, finaliza Descartes sua Primeira Meditação. Mesmo não havendo ainda o domínio da grandiosa busca do conhecimento da verdade, no entanto, já se assinala o método que o fará bem sucedido.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

DESCARTES, René. Meditações. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. Ed. Bertrand Brasil, 3ª Ed., pág. 117-123.