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domingo, 27 de julho de 2008

O IDEAL, O REAL E O POSSÍVEL

"omnem crede diem tibi diluxisse supremum"age como se cada despertar fosse teu último alvorecer
[Horácio, Epistulae 1.4.13]

O ideal aponta sempre, em perspectiva, para o distante, o inatingível, para aquilo a que se aspira em estado de suspensão, de contemplação, de perplexidade. Sempre se lançando ao projeto, à expectativa do que há por vir, àquele “aquilo” no qual, invariável e até necessariamente, existe a pressuposição de uma inevitável vocação para o vir a “acontecer” e a se “tornar”, num modo infinitivo de conjugação. No entanto, nada é tão inalcançável quanto o perambular “em linha reta”, ao tempo em que se percorre o entorno de um círculo cujo perímetro tangencia o infinito: o “Ideal”.
Num extremo oposto, o real se caracteriza por uma singular adequação ao que é dado, oferecido, reservado. O “bastar-se a si” é a tônica principal e norteadora de sua cristalização ontológica, donde ressalta a certeza da manifestação enquanto tal, em detrimento de sua quase insuspeita mutabilidade: o “Real”.
Possibilidade, por seu turno, requer uma verdadeira conjunção vetorial dos dois elementos brevemente tratados acima. Pois, fruto da inspiração advinda do refluxo contemplativo do Ideal a intervir (ou interferir), intrinsecamente, na estrutura estratificada do Real, o possível sempre põe os pés na estrada, em atitude pró-ativa de “agente”, mantendo, todavia, a mente e o coração em sintonia com o cintilante brilho das estrelas distantes e, aparentemente, imorredouras em sua incansável atividade produtora de luz.
Assim, “não” de repente é que algo simplesmente se torna possível, quando tão-somente poderia ter sido idealmente vislumbrado ou, absoluta e efetivamente não localizado no âmbito daquilo que costumamos padronizar como “o real”.

Jorge Pi

sexta-feira, 13 de junho de 2008

A APOLOGIA DO MESTRE SÓCRATES (por Platão, seu dileto Discípulo)




(A Morte de Sócrates. Quadro de David, concluído em 1787)


Pequeno Resumo (Jorge Pi)

da

"Apologia de Sócrates"

(Diálogo Platônico)


Sócrates inicia a sua defesa, dirigindo-se aos cidadãos atenienses e lhes fazendo notar que seus acusadores são mentirosos, sobremodo quando sugerem cautela quanto às suas habilidades de orador, a respeito das quais ele afirma não ser detentor e ainda acrescenta não saber absolutamente falar bem, a menos que isto signifique dizer a verdade.

Tendo sido essa a primeira vez a comparecer a um tribunal e já com a idade superior a setenta anos, faz lembrar aos presentes que não é conhecedor da linguagem ali empregada, pedindo então que o permitam falar como sabe, ou seja, sob a luz da verdade.

Divisando dois grupos de acusadores, os mais antigos e os mais recentes, delibera se reportar primeiramente aos mais antigos, considerando-os muito mais perigosos que os atuais. Mentores primeiros da falsa figura de um Sócrates objeto de julgamento de agora, pois, sem base, acusaram, geraram boatos inverídicos e criaram uma falsa imagem, quando delinearam um “(...) homem sábio que especulava as coisas do céu e investigava as de debaixo da terra e que conhecia o meio de deixar bons os argumentos ruins” (18b), levando a “(...) induzir outros a fazerem a mesma coisa” (19b); com a agravante de terem inculcado tais engodos na mente dos acusadores de agora, quando estes ainda eram, uns, crianças, outros, adolescentes, portanto, suscetíveis, todos, de acreditarem em tudo.

Aponta, ademais, nos escritos de Aristófanes, um certo Sócrates “(...) que se gaba de andar pelo ar e anuncia um sem-número de tolices de que”, afirma, “eu não entendo nem muito nem pouco” (19c). Além de se reportar, com espanto, à afirmação de que receberia dinheiro em pagamento, à moda dos sofistas Górgias, Pródico e Hípias, que comercializam o “Saber”, o que também não espelha a verdade, a despeito de que mesmo que o espelhasse, atestaria, ainda assim, uma enorme incongruência por “(...) possuir semelhante arte (...)” e “(...) ensiná-la por preço tão módico” (20c).

Continua, tratando da sua missão: Querofante, “(...) de uma feita, estando em Delfos, atreveu-se a consultar o oráculo”. “(...) Perguntou, de fato, se havia alguém mais sábio do que eu. Ora, a Pítia respondeu que ninguém era mais sábio” (21a). “Depois de ouvir aquilo, pus-me a refletir a sós comigo: que quererá dizer a divindade e que pretende insinuar? Tenho Plena consciência de não ser nem muito sábio nem pouco. (...) Mentira não pode ser (...)” (21c).

Então, após investigação minuciosa da real condição de ser sábio, dos que assim se proclamavam, Sócrates percebeu que o oráculo tinha razão, posto que todos se arvoravam de serem detentores de um saber que não possuíam, em última análise, e, assim, não eram sábios, face à incapacidade mesma de se reconhecerem ignorantes. “Parece, portanto, que nesse pouquinho, eu o ultrapasso em sabedoria, pois, embora nada saiba, não imagino saber alguma coisa” (21d), conclui.

Assim foi que Sócrates angariou um sem-número de inimigos, à medida que, a serviço do divino, interpelava a todos por quem cruzasse, com o intuito de despertar-lhes do seu real estado de ignorância. E eram abordados os políticos, os poetas, os artistas e os oradores. E sempre a mesma colheita de pretensa sabedoria, o que o levou a entender que “só o deus é sábio” e que “a sabedoria humana vale muito pouco ou quase nada (...)” (23a). Com efeito, alcançara apenas uma condição próxima à extrema pobreza material e a uma suscetibilidade às inimizades certas, fruto inevitável do pleno exercício da aludida missão.

Encerradas as considerações a respeito do passado, direcionou a palavra e o pensamento à figura ignóbil de Méleto, o seu atual adversário, cuja acusação consistia em que ele seria “culpado de corromper os moços e não acreditar nos deuses que a cidade admite, além de aceitar divindades novas” (24 b, 9-10 e 24 c, 1). Ora, nenhuma das partes que compunham a citada acusação tinha fundamento, o que fez com que Sócrates facilmente argumentasse lúcida e perspicazmente, diluindo todas as matizes de gravidade pretendida pelo acusador.

No que tange ao crime de corromper os moços, toma o próprio Méleto como um brincalhão inconseqüente. Em tempo, indaga quem, então, os deixa melhores, ao que inicialmente e de forma despropositada, responde: “as leis” (24 d, 13). Levando a Sócrates, em conseqüência, tornar a perguntar: “quem?” É, então, que o seu opositor cai em si e se corrige: “os juízes!” De tal sorte que, devido ao persistente instigar de Sócrates, Méleto desemboca a abranger, além de todos os juízes ali presentes, também os cidadãos reunidos ao redor e, por fim, todos os atenienses, menos um: Sócrates!

Diante de tamanho rebaixamento, Sócrates questiona, fazendo um paralelo, se seriam todos os homens que deixariam melhores os cavalos e um, ou alguns poucos, os tratadores, apenas, os que os estragariam, ou seria o contrário. Com isso, atestava a irresponsável indiferença de Méleto quanto à real preocupação com os moços, quando o que lhe impulsionava era, evidentemente, a caluniadora acusação, elaborada a todo o custo, contra Sócrates. Este admoesta que, mesmo que os tivesse corrompido, voluntária ou involuntariamente, mereceria a instrução e o ensino reparadores e não, necessariamente, a punição precipitada e irrefletida.

No que diz respeito à crença nos deuses, Sócrates culminava por argumentar em favor de si que, tendo deixado claro que acredita que existem deuses, como se sustenta a acusação de que ele é culpado por não acreditar nos deuses? “Positivamente, tudo isso não passa de pilhéria” (27 a, 8).

E quanto a “aceitar divindades novas”, Sócrates esclarece: “(...) confessas que eu admito a existência de coisas demoníacas e que as ensino, pouco importando se são novas ou antigas; o fato é que acredito em coisas demoníacas (...)” (27c, 6-9). Então, pode-se, com extrema facilidade, que se Sócrates acredita em coisas demoníacas, ele, necessariamente, acredita em demônios. E, se demônios são deuses ou filhos de deuses, então ele acredita nos deuses já constituídos.

Mais adiante, Sócrates delineia a natureza do seu daimond: “(...) a muita gente parecerá estranho que eu andasse pela cidade e me afanasse a aconselhar particularmente os outros, e nos assuntos públicos não tivesse ânimo de freqüentar as assembléias e dar conselhos à cidade” (31c, 7-11). A razão está em “(...) algo divino e demoníaco que se dá comigo e a que, por zombaria, o próprio Méleto se referiu em sua acusação. Isso começou desde o meu tempo de menino, uma espécie de voz que só se manifesta para dissuadir-me do que eu esteja com intenção de praticar, nunca para levar-me a fazer alguma coisa. Isso é que se opõe a que me ocupe com política. E, com toda a razão (...), se há muito tempo eu me tivesse ocupado com os negócios públicos, há muito, também, já teria deixado de existir, sem ter sido de nenhuma utilidade nem para vós, nem para mim” (31c, 11 até 31e, 2). Aí, então, reporta-se ao incidente do julgamento dos dez generais que, na batalha naval, não recolheram os mortos, no qual fora o único a se pronunciar contra a condenação, dentre todos o presentes no julgamento, por se tratar de evidente injustiça, se assim ocorresse. Por sorte, esse seu ato não o levou à morte, graças à súbita e providencial mudança de governo.

Continuando, diz: “trata-se (...) de uma obrigação imposta pela divindade, por meio de oráculos e de sonhos (...)” (33c, 5-7). É isto o que impulsiona Sócrates a ir de encontro dos que se dizem sábios sem o serem e em caráter individual e reflexivo. Nisto, distingue-se Sócrates da maioria dos homens. Tanto que o faz sugerir aos seus juízes, com fina ironia, mas também provido da mais pura honestamente, uma mudança radical à sua penalidade: mereceria algo bom, como convém a um benfeitor pobre que precisa ter livre todo o tempo para admoestar a todos. Algo como “(...) ser alimentado no Pritaneu (...)” (36d, 8-9), em lugar de qualquer vencedor das Olimpíadas, já que qualquer destes só proporciona aparência de felicidade, enquanto Sócrates, a verdadeira felicidade.

Em seguida, num lampejo de profetismo vê claramente e comunica sem rodeios os tormentos conscienciais subseqüentes dos seus desgraçados acusadores e os adverte do terrível erro que estão a cometer, como se, por um instante, fosse o próprio daimond a se manifestar em forma de palavra de verdade a transbordar na taça socrática do sacrifício derradeiro.

E o daimond é silêncio tumular e o incita a acatar a decisão de beber a cicuta. Pois é absolutamente impossível, para Sócrates, abandonar a filosofia ou abraçar o exílio, o que representaria algo infinitamente pior do que a própria morte: a anulação tácita de toda uma vida em busca da verdade. E o que é a morte, afinal? O sono definitivo e libertador? “Se a morte for isto, considero-a um grande lucro (...)” (40e, 2-3) A transição à consciência pura, plena e perene? “Se ao chegar alguém ao Hades, livre dos que se dizem juízes, e lá encontrar os juízes verdadeiros, conforme contam, a distribuir justiça (...) seria má, essa mudança?” (41a, 2-4, 6-7).

Por fim , como quem decide e não como quem é forçado a acatar, profere, solene e tranqüilamente: “(...) está na hora de nos irmos: eu para morrer; vós, para viver. A quem tocou a melhor parte, é o que nenhum de nós pode saber, exceto a divindade” (42a, 3-5).



REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA


PLATÃO. Apologia de Sócrates. Trad. Carlos Alberto Nunes. Pará: Universidade Federal do Pará, 1980, pp 43-73.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

A REALIDADE DIVINA E A PLENITUDE INTERIOR EM AGOSTINHO

Jorge Pi

A vida de Santo Agostinho pode ser divida em duas partes: antes e depois da conversão. Sendo, esta última, o marco principal a partir do qual ele se inscreve nos anais da história da humanidade. Canalizando toda sua energia no serviço da fé cristã, ele também buscou compreender a verdade pela via da razão. Sempre com o dualismo de corpo e alma em ininterrupto combate. No caminho da fé, muitas vezes, para expressar o que seria inexprimível, a utilização de metáforas acabou por ser a solução. Entender Agostinho pressupõe penetrar em seu mundo interior. Tarefa das mais difíceis, pois ler nos sinais exteriores da vida comum já é por demais exaustivo e desanimador, tanto mais penetrar em tamanha escuridão, portando apenas pequena fagulha de lucidez racional. Necessário re-trilhar a senda interior da mística relação agostiniana com o divino para comungar com algum prenúncio de possível entendimento.

As Confissões constituem uma síntese perfeita da filosofia de Agostinho. Até mesmo em nossos dias, este livro se mostra bastante atual. Nele é narrada, com extrema desenvoltura de quem sabe bem sobre o que expõe, a dura experiência humana, no que concerne ao conflito entre a finitude e infinitude, o vício e a virtude. Há, ademais, em toda a obra, um fio condutor de delicada esperança, bem como contínuas e evidentes alternações de sentimentos opostos.

Nesta obra, para além da direta exposição das misérias e desregramentos que podem ocorrer na vida de um ser humano, a indicação sutil e constante de que, apesar da evidência da corruptabilidade oriunda da herança inevitável do pecado original, há que se reconhecer a ação redentora e ininterrupta do Espírito Santo que, através da Graça da Providência Divina, opera constantemente naquilo que corresponde, no homem, à “imagem e semelhança de Deus” (Gen. 1,27), em sua realidade mais profunda e mais interna, oculta, no entanto, de sua própria consciência e intrinsecamente mergulhada em sua tão desencontrada subjetividade.Isto porque há no homem um eu único que, no entanto, configura-se como dois: um, exterior (pecador, miserável, finito, malicioso, perturbado, bestial), e, outro, interior (santo, afortunado, infinito, puro, sereno, divino).

Cabe, então, ao homem através da Graça, a tarefa de fazer render-se e adequar-se ao eu interior, o outro eu, o exterior, tão próximo de nós, tanto quanto distante de nossa desconhecida plenitude interior, por caracterizar-se como incansável distanciador da realidade divina, privando-nos, assim, da tão almejada salvação, dádiva maior já nos ofertada e reservada por Jesus, o Cristo, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

É o que se vê logo no início do primeiro livro:

“O homem, fragmentozinho da criação, quer louvar-Vos; - o homem que publica a sua mortalidade arrastando o testemunho do seu pecado e a prova de que Vós resistis aos soberbos. Todavia, esse homem, particulazinha da criação, deseja louvar-Vos. Vós o incitais a que se deleite nos vossos louvores, porque nos criastes para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós”. (Confissões. Livro I, l, Invocação ou Louvor?, pág. 37).

Agostinho, ao se referir ao homem como “fragmentozinho” e “particulazinha”, está se reportando ao aspecto finito do nosso ser, este que age, pensa, peca, arrepende-se, erra, busca o acerto, perambula pelas vias da corruptabilidade, consome-se até as últimas forças perseguindo saciar os apetites carnais, no intuito, entretanto, de alcançar a completude, quando o que consegue, somente, é se atolar, mais e mais, no lamaçal fétido e repugnante da dor e da desgraça, acumulando remorso após remorso, ou mesmo exercitando o emudecimento da voz da consciência.

Ao mesmo tempo, ao dizer “nos criastes para vós” (título do segundo capítulo do primeiro livro), o Bispo de Hipona revela-nos, ocultando-nos, a referência a algo em nossa natureza que nos aproxima da Natureza incorruptível de Deus, por uma correspondência ativa de semelhança interna, oriunda da realidade divina, no processo consciencial infuso no âmago de toda e cada criatura humana.

Isso sempre é perceptível nas diversas exaltações que Agostinho faz a Deus, reconhecendo a grandeza Divina dentro de sua pequena existência de ser humano. É o júbilo tomando conta de um grande sentimento religioso que o Santo expressa em seu livro, pelo qual compartilha sua vida diante do desafio do livre-arbítrio e, ao mesmo tempo, a auto-entrega à graça divina, em demonstração de confiança, exortando-nos, desta maneira, a sairmos de nossa pequenez com o auxílio da força de Deus.

No título inicial do primeiro livro, “Invocação ou Louvor?”, está clara a encruzilhada em que Santo Agostinho se vê tomado, como se diante de duas direções opostas, mas que hão de levar, no fim, ao mesmo destino. E por decisão própria, ao escolher a invocação, ao invés da Louvação, ele escolhe a via interna de conexão com o Divino, ou a via da crença que se encaminha ao encontro do conhecimento da verdade.

O Bispo de Hipona não se deixava paralisar diante da barreira da vergonha de se reconhecer mísero e pecaminoso nas entranhas do eu que, superficial, interfere e corrompe a possibilidade de uma caminhada tranqüila e isenta de obstáculos: Se “Deus está no homem” é porque “o homem está em Deus” (Confissões. Livro I, 1, Invocação ou Louvor?, Pág. 37).

Em Agostinho há uma espécie de dualidade platônica cristianizada, dada à constante presença da relação entre a miséria humana e a grandeza Divina, tornando-se uma indelével marca na Igreja Católica, por toda a Idade Média. Sendo sempre o embate entre o corpo e a alma, um infindável tema de exaustíveis querelas.

No capítulo sexto do livro primeiro, intitulado “No alvorecer da Vida”, Agostinho se reporta ao “eu, pó e cinza”, tirado do livro bíblico do Gênesis, no capítulo décimo oitavo, versículo vigésimo sétimo, aludindo claramente àquela parte de nós que não fora criada à imagem e semelhança de Deus, mas como sendo constituído de finitude e limitação. E por todos os capítulos dos treze livros de suas Confissões, este será o eu ao qual, invariavelmente, irá se referir, porém sempre o fará em tom de negação, condenação e anulação, não como ato de um suicida insano, mas como o de um ousado libertador. A ousadia em querer, ou desejar firmemente, vencer as ilusões exteriores, em exaustivo combate consigo mesmo.

A idéia de culpa também é muito presente. Somente confessa aquele que se sente culpado com relação a alguma coisa, sendo o arrependimento o objetivo almejado. E o que sobra ao homem pecador confessar senão as suas fraquezas?

Cristão, Agostinho abre a todos nós o caminho trilhado para a conversão, como um incentivo e um alento a todos os que se sentem perdidos e confusos. Com a proposta de trazer o apoio da divina graça ao espírito perturbado, Agostinho divide sua experiência com todos nós, revelando-nos a infinita misericórdia daquele que o salvou: o Cristo Jesus. É o seu profundo agradecimento a Deus, por ter-lhe trazido à Luz da Divina Graça, o desvelar os segredos mais recônditos de sua consciência, como um autêntico testemunho de amor pelo Criador.

Assim são rememoradas todas as etapas de sua vida, mesmo aquela em que não é possível reconstituir, a não ser pelo rememorar daqueles com os quais compartilhava a escuridão pessoal e inconsciente de ser e não saber que se é: a primeira infância.

Implacável, Agostinho é, ao mesmo tempo, lúcido ao apontar para atos aparente e convencionalmente naturais e carregados de uma atmosfera de pureza, como o mamar no seio materno, não por considera-lo, de per si , pecaminoso, mas por vislumbrar, mesmo aí, a natureza corruptível em estado embrionário, a seduzir e inspirar, usando-se da própria pureza, toda a malícia em potencial que já se compõe em tendência subliminar. Um certo exagero de homem religioso e cristão? O fato é que o eu exterior está em formação, a começar pela infância e, logo após, na adolescência. E como pelos frutos é que se conhece a árvore, assim também, a árvore, em potência, está toda ela já na semente e porque não considerar também, os frutos, mesmo em estado de latência?

Numa interminável catarse, o que Agostinho pretende não é tanto evidenciar os erros do pecador, o que, por si mesmo, é gritantemente manifesto e perfeitamente perceptível em nossas vidas. Porém, o intuito é outro: ter consciência crítica da parte de nós, humanos, que nos priva da Realidade Divina. E como o mal é apenas a ausência ou a privação do Bem, ou de Deus, ao exercitar a conscientização do nada como nada sendo, há que restar a percepção clara, lúcida e inequívoca da plenitude interior no mais profundo do ser (humano). Por isso, a incansável utilização do método de buscar em nós, o que há de essencialmente divino, através da não menos incansável negativa e decisiva recusa do que, em nós, não presta, moralmente.

Há como que uma bondade insuspeita em todo ato de combate ao pecador, em nós. Isso porque, ao buscar transformação naquilo que tende naturalmente ao mal, na natureza humana, equivale a querer, por redenção, tornar o Bem o único senhor e dirigente; o que condiz com a própria Vontade de Deus para com a sua criação: a de que seja instaurada, sempre e sempre, as faces da Perfeição por toda a parte, tempo e consciência.

Nas Confissões, uma outra leitura também é possível fazer. Uma apologia pessoal de Agostinho, já que este tinha que enfrentar diretamente seus inimigos doutrinais, os chamados “hereges”, os quais sempre lhe lançavam ao rosto sua vida desregrada da mocidade. Humilde, ele vence os sarcasmos de seus perseguidores, entregando-lhes sua autobiografia, sendo esta a melhor maneira de se defender, calando de uma vez por todas os seus inimigos, pois, nele, nada mais estaria escondido, não havendo mais o receio à exposição pública sujeita a qualquer questionamento e muito menos qualquer tipo de calúnia. Como um bom advogado de si mesmo, adiantou-se ao que poderiam fazer consigo e fê-lo primeiro. Pela sua ação, calou os que tentavam caluniá-lo e assim se justifica: “Não me caluniem os soberbos, porque eu conheço bem o preço da minha redenção” (Confissões. II Parte. Livro X. Cap. 43).

Hábil político, o bispo de Hipona, em muito, dificultara as atitudes de seus adversários. Não por acaso que se tornara bispo. Outrora professor de retórica, a arte do bem falar, de bem saber empregar as palavras corretas na hora certa, nas Confissões, assume posturas que bem revelam sua habilidade de saber lidar com os diversos problemas que lhe apareciam.

Os dogmas da Igreja Católica foram teoricamente fundamentados por Agostinho. Notemos que antes de sua conversão, Agostinho de Hipona conhecera os lados de seus adversários e, após convertido ao catolicismo, pode muito bem explorá-los.

Porém, quando Agostinho combate os maniqueus (e sempre irá fazê-lo), ele quer, de fato, contrapor-se à idéia de supervalorização do eu exterior que, numa tentativa de torná-lo o mais possível polido, instruído e educado, todos nós cometemos o grave erro de inverter o seu papel de veículo para de condutor, enquanto o eu verdadeiro, o interior, é negligenciado e deixado à margem ou ignorado.

“Grande Abismo é o homem, Senhor!” (Confissões. Livro IV, cap. XIV). Que dizer de tal pensamento que define tão bem a natureza do homem? Que é o homem? A esta indagação, socorre-nos, de pronto, a nossa memória, a nos apontar as pernas, os braços, o tronco, a cabeça, os trejeitos denunciadores e característicos da imagem e personalidade de determinado sujeito. Mas, que, de fato, é o homem, em sua essência última, que possamos nos dar por satisfeitos em razão mesma da elucidação porventura consumada? O homem é um abismo que se debruça por sobre si mesmo e cai num abismo maior do que ele próprio: Deus.

Que profundidade inatingível é esta a se confundir com a profundidade maior à qual chamamos Deus? E, numa dolorosa depuração dos movimentos infinitos daquilo que conhecemos como vida, desdobra-se em vertiginosa estupefação, ao se exprimir em vontade carnal. Quão pequeno, no entanto, é o homem? Na mesma proporção em que incomensuravelmente grande seja sua abismal indagação a respeito de si.

No livro IV, capítulo 15, Agostinho indica uma definição de belo como “o que agrada por si mesmo” e de conveniente como “o que agrada pela sua acomodação a alguma coisa”.

            Assim, convém que sejamos amigos dos nossos amigos. No entanto, na medida em que esta nossa filia nos enreda em atos errôneos, mesmo em contraposição ao que nos incita a sutil voz consciencial, sinalizando-nos o desvio vetorial na senda do crescimento moral, faz-se urgente tomar tento de que a verdadeira harmonia das proporções simétricas sempre está nas dimensões espirituais da vida e não na material ou nas formas corporais.

            Mais do que a aparência, Agostinho faz-nos entender que o belo encontrado nas exterioridades carnais e mundanas é, antes de tudo, transitório e traiçoeiro. O que hoje é belo, em manifestação corpórea, amanhã poderá, com grande probabilidade de acerto, não expressar senão deformidade e decadência. E nas ilusões do tempo que passa, deixamo-nos envolver pelas paixões, sempre em busca de preencher vazios existenciais sem, no entanto, atingir tal intento. Pois de Deus é que vem toda a Vida e toda a Graça. Sem graça sempre acaba ficando todo o belo que seja percebido nas coisas por elas próprias; ou em tudo aquilo que convém categorizar como sendo belo, quando, tão somente está belo. Porque tudo o que é belo, o é porque vem de Deus.

Nas Confissões, podemos observar a profunda intimidade agostiniana com a Bíblia, em que ele se mostra grande conhecedor da mesma, tendo-a presente em sua vida diária, pois escrevia sempre embasado em sua disciplina religiosa.

De um lado há o temor a Deus. De outro, a confiança na Sua infinita misericórdia. O autor sente-se mesmo como filho amparado pelo Pai e nisso encontra forças para tudo enfrentar na vida. O que fica bem nítido na leitura é a grande fé que acompanha esse Doutor da Igreja. A familiaridade com o divino fica explícita. Também é um livro em que a exortação à luta interior tem um grande foco, pois, sem esta, todas as outras nada valem. Nesse sentido, Agostinho chega a fazer drama ao contar suas experiências estando longe e perto do bem. De outra perspectiva, pode ser sua obra olhada como incentivadora no que diz respeito aos que se sentem perdidos, angustiados, cansados enquanto descrentes a vagar por mares sem ancoradouro. Poeta, o bispo de Hipona não perdia de vista os sentimentos mais profundos da alma humana, exortando a todos a se escutarem, para encontrarem aí a voz de Deus: “Ouça, pois, vossa voz em seu interior, quem puder!” (Agostinho. Confissões. II Parte. Livro XI. Cap. 9).

            Assim como o que buscamos após a tempestade, afinal, é a bonança, assim também se percebe que Agostinho consegue nos presentear com essa quietude encontrada após as diversas tormentas pelas quais passa a alma humana. Pois ele, ao falar de si, tratou de seu elo comum com toda a humanidade. Por uma outra ótica, generalizou as condições intrínsecas a cada um de nós, no decorrer da história da humanidade. O que em Agostinho se fez teoria da graça divina, e isso ele conseguiu demonstrar por sua própria conversão, provoca também indagações para uma auto-reflexão, pois também trabalhou na esfera do livre-arbítrio, a capacidade de cada qual optar pelo que quer, mexendo com a responsabilidade individual. O que pretende é a exposição daquilo que tanto preza o Evangelho: o arrependimento dos pecados e a misericórdia de Deus, entrelaçadas nas suas doutrinas da graça e do livre-arbítrio. Confiante, entrega-se a Deus:

“Só na grandeza da vossa misericórdia coloco toda a minha esperança. Dai-me o que me ordenais e ordenai-me o que quiserdes” (Agostinho. Confissões. II Parte. Livro X. Cap. 29)

Nas Confissões, Agostinho não somente se revela teólogo e filósofo, submetendo, naturalmente, as indagações filosóficas ao santo ofício da fé, como também revela, paulatinamente, a senda que percorreu para chegar a ser o que é. Singular e autêntico, fala da sua própria experiência como homem finito e pecador bem como de sua ligação com a Realidade Divina e sua Plenitude Interior.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

AGOSTINHO, Stº. Confissões. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 2000.


terça-feira, 10 de junho de 2008

PEQUENA ANÁLISE DA “MEDITAÇÃO PRIMEIRA” (René Descartes)

Jorge Pi














A partir dos três pontos duvidosos refletidos na Quarta Parte do Discurso do Método, quais sejam, a desconfiança nos sentidos, o raciocínio da matemática e o argumento do sonho, René Descartes constrói a sua Primeira Meditação, intitulada “Das coisas que se podem colocar em dúvida”, pautando-se no estabelecimento da dúvida hiperbólica (radical), do dilema de um Deus enganador e do gênio maligno e ardiloso.

Logo no início da meditação, ele constata que falsas opiniões são tidas como verdadeiras e que princípios mal assegurados são, por natureza, duvidosos e incertos; chegando à compreensão de que é necessário, então, desfazer-se de todas as opiniões sedimentadas e começar tudo novamente desde os fundamentos, para bem estabelecer as bases das ciências; pois, se há algum tempo nutria a compreensão de que seria preciso haver maturidade intelectual (não, cronológica), que possibilita a aptidão para a execução de tal empreendimento, agora tinha a inequívoca convicção de que era chegado o tempo.

Com o espírito livre de cuidados materiais e em pacífica solidão, ele resolve dedicar-se à destruição de suas antigas opiniões, bastando-lhe apenas o menor motivo de dúvida para levar a cabo a sua rejeição, a partir dos princípios básicos, fazendo, em conseqüência, ruir todo o edifício. Tal dúvida não seria de natureza vulgar, mas tinha um caráter hiperbólico, isto é, sistemática e generalizada, pois se é certo que algo pode nos enganar uma vez, tanto mais certo é que nos engane todas às vezes, sendo este o primeiro grau da dúvida, construído na forma do argumento do erro do sentido. Assim, a certeza e a dúvida morais são insuficientes para o estabelecimento das ciências.

No entanto, apesar de os sentidos nos enganarem, às vezes, há, inegavelmente, muitas coisas indubitáveis como o ato de nos situarmos em algum lugar, sentindo o corpo como sendo nosso; pois, ao contrário do que ocorre com os espíritos extravagantes, fracos, insensatos, que se tomam pelo que não são, não podemos negar a existência de tudo que nos rodeia. Apesar de que a prática de nos pautarmos em dados empíricos é, de fato, uma insensatez.

Por outro lado, enquanto homem, Descartes sabe que pode dormir e sonhar que está acordado e consciente, quando, em verdade, apenas dorme. Há, então, uma absoluta falta de critério para distinguir o sonho da vigília, tendo-se por base as sensações. No máximo, haveria uma certeza moral. Assim, é cabível que se duvide da existência do mundo.

Com efeito, seja considerada a probabilidade de estarmos dormindo e tudo o que percebamos sejam apenas falsas ilusões. Que nada seja, tal como nos pareça. Ainda assim, essas nossas percepções oníricas seriam, sim, indicadoras de que as coisas, assim percebidas, são semelhantes às reais e verdadeiras, não sendo imaginárias, mas, de algum modo, verdadeiras e, de fato, existentes. Mesmo os pintores, quando pincelam formas estranhas e até extraordinárias, não constroem nada de natureza inteiramente nova, mas são formados arranjos compostos a partir de elementos singulares pré-existentes. E mesmo que consigam como resultado uma pintura completamente estranha, ao menos as cores das tintas utilizadas teriam de ser verdadeiras.

Ademais, ainda que as coisas gerais possam ser imaginárias, há sempre coisas mais simples e mais universais, formadas por imagens que residem em nosso pensamento, quer sejam fictícias ou reais. Assim são as coisas materiais, bem como sua configuração, sua quantificação, sua localização e sua duração, dentre outras considerações.

É desse modo que a Física, a Astronomia, a Medicina, bem como as demais ciências direcionadas às coisas compostas são muito duvidosas e incertas. Enquanto que a Aritmética, a Geometria e as outras ciências que tratam de coisas muito simples e gerais, destituídas que são do comprometimento estrutural pela sua necessária manifestação no mundo material, possuem algo de certo e indubitável. Pois, em sonho ou em vigília, dois mais três resultarão sempre o número cinco e o quadrado sempre terá quatro lados; não sendo nunca possível que haja falsidade e incerteza em tal juízo.

Descartes, então, no caminho da dúvida hiperbólica, revela-nos a sua esquematização referente à existência de um Deus onipotente, criador e enganador, que nos ilude com a aparência de realidade nas coisas que vemos e julgamos que sejam tais quais as divisamos. E como é possível se enganar até naquilo em que se tenha maior certeza, é também provável que esse Deus desejasse que houvesse engano mesmo no âmbito dos rudimentos da lógica matemática. Mesmo considerando-O como Sumamente Bom, persiste o fato de que, eventualmente, enganamo-nos.

Ainda assim, há quem duvide da existência desse Deus tão poderoso, mas não que as outras coisas sejam certas e definidas. Considerando que assim seja, qualquer que fosse a origem do ser, ou o destino, ou a fatalidade, ou o acaso, ou até uma contínua série de conexão das coisas, quanto menos poderosa a fonte, tanto mais continuadamente imperfeita e falível seria. A partir disso, Descartes considera que, sem ser leviano e com muita maturidade no pensar, não há nenhuma opinião herdada de outrora que não seja passível da dúvida. Conseqüentemente, faz-se necessária a suspensão do juízo sobre esses pensamentos para que seja alcançado algo constante e seguro nas ciências.

E é preciso ser vigilante para não tornar a sucumbir às velhas opiniões, pois, de tão familiares, retornam ao pensamento, como senhoras absolutas. É necessário o exercício constante da dúvida metódica, por precaução. Por essa razão, fingindo que todos esses pensamentos são falsos e imaginários, anular-se-á o peso da influência dessas opiniões levando, com segurança, ao conhecimento da verdade.

Descartes, em seguida, propõe um elemento artificial, com o qual busca abalar as falsas crenças. Fala de um certo gênio maligno, com o intuito de reforçar a radicalidade total da dúvida metódica. Pensa em tudo o que existe, na exterioridade, como sendo ilusão e engano construídos por esse gênio com fins de surpreender e fisgar nossa credulidade. Imagina-se não tendo o corpo e os sentidos e, ainda assim, dotado com a crença errônea de possuí-los. Nessa linha de pensamento, entende não poder, de fato, chegar ao conhecimento verdadeiro, mas, ao menos, possibilita a suspensão do juízo. Desta maneira, pretende, e consegue, escapar dos ardis desse gênio enganador.

Tal empreendimento é árduo e trabalhoso, pois existe uma tendência natural ao retorno à vida ordinária. Acostumada que está, a natureza humana, às falsas crenças e opiniões duvidosas tidas como verdadeiras, há sempre a reincidência à letargia viciosa e debilitante do falso conhecimento, sendo mais difícil o retorno à vigília laboriosa e dignificante do verdadeiro conhecimento. Assim, finaliza Descartes sua Primeira Meditação. Mesmo não havendo ainda o domínio da grandiosa busca do conhecimento da verdade, no entanto, já se assinala o método que o fará bem sucedido.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

DESCARTES, René. Meditações. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. Ed. Bertrand Brasil, 3ª Ed., pág. 117-123.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

RESUMO DE "A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA" (Etienne de La Boétie)

Jorge Pi










Etienne de La Boétie, no início de seu Discurso da Servidão Voluntária, reporta-se a Homero, através da fala de Ulisses, quando este afirma que é melhor ter um senhor a ter vários. Argumenta dizendo que quando um senhor é mau, estamos sujeitos à infelicidade, quanto mais se nos sujeitarmos a vários. Em seguida, estupefato, o autor constata o absurdo de haver tantos homens, cidades e nações que facilmente se submetem a um só Tirano, cujo poderio é, ironicamente, outorgado por eles próprios. Conclui, então, ser resultado da fraqueza humana o submeter-se à servidão voluntária.

“Não é vergonhoso ver um número infinito de homens não só obedecer, mas rastejar (...)?” (Pág. 75; 9-10). Sob o domínio de um governo tirano, muitas adversidades são impostas, injustificadamente, a despeito de todas as implicações, atingindo desde os bens materiais até os laços afetivos mais caros, tudo ao bel-prazer de um homenzinho, o mais das vezes, covarde, vil e até afeminado.

“Será covardia?” (Pág. 79; 30) Uma humanidade inteira covarde? Como?! “Não é só covardia” (Pág. 75; 33). É o hiato entre a liberdade e a escravidão. Pois são os homens que se deixam escravizar, cair no vazio, no sem sentido de uma existência limitada, fruto de uma doação completa ao domínio tirânico, voluntariamente.

Mas, para alcançar a liberdade, basta aspirá-la? Não é assim tão simples. Como o fogo que consome continuamente para se perpetuar, “os tiranos, quanto mais pilham mais exigem; quanto mais arruínam e destroem, mais se lhes oferece (...); mas se nada se lhes dá (...), semelhante à árvore que, recebendo mais sumo e alimento para sua raiz, em breve é apenas um galho seco e morto” (Pág. 78; 2-9).

Vislumbra-se, assim, uma saída: a firme intenção de desejar as coisas, de cuja posse, torna-nos felizes. Menos a liberdade! Mas por que, já que, sem ela, resta-nos apenas a servidão? Será que a dificuldade reside na amedrontadora facilidade de ser livre?

Todos se enfraquecem para que um se fortaleça!

Será, a liberdade, natural ou não?

Já se observou que, depois de capturados, vários bichos morrem. Outros resistem à captura com suas defesas próprias, como a reconhecer a grandeza do estado de liberdade. Assim também com o homem?

“Que vício infeliz pode então desnaturar tanto o homem, o único que realmente nasceu para viver livre, a ponto de fazê-lo perder a lembrança de sua primeira condição e o próprio desejo de retomá-la?” (Pág. 82; 20-23).

Tiranos há de três tipos: por eleição popular, por força das armas e pela hereditariedade. Os primeiros são traidores; os segundos, cruéis e sedentos de poder; os últimos se consideram proprietários dos governados.

Então, “(...) para que os homens, enquanto neles resta vestígio de homem, se deixem sujeitar, é preciso uma das duas coisas: que sejam forçados ou iludidos” (Pág. 83; 26-29).

Inicialmente, a servidão é forçada; com o tempo, vem o acostumar-se a ela; então, os descendentes, tendo nascido neste estado de coisas, servem sem pesar e voluntariamente, como se fosse algo natural.

Mas há sempre o tempo do despertar e do questionamento. É quando o hábito é posto em suspeita. No entanto, “(...) as sementes do bem que a natureza põe em nós são tão frágeis e finais que não podem resistir ao menor choque das paixões nem à influência de uma educação que as contraria” (Pág. 85; 1-3).

“Em toda parte e em todos os lugares a escravidão é odiosa para os homens e a liberdade lhes é cara (...)” (Pág. 85; 33-35). Porém, os que nasceram na servidão não são verdadeiros conhecedores da liberdade. “Assim, a primeira razão da servidão voluntária é o hábito” (Pág. 88; 15-16) “Desta decorre (...) outra: sob os tiranos, os homens se tornam necessariamente covardes e afeminados (...) (Pág. 90; 10-12)”.

A valentia é ausente, quando falta a liberdade. Os escravos não têm o mesmo ímpeto que os homens livres, no âmago do seu coração, ao enfrentarem os mesmos desafios e perigos, pois não podem contar com a certeza de que serão seus os frutos da vitória ou até mesmo o amargo gosto da derrota, por ser sua e não de outrem. “(...) Os escravos, inteiramente sem coragem e vivacidade, têm o coração baixo e mole, e são incapazes de qualquer grande ação. Disso bem sabem os tiranos; assim fazem todo o possível para torná-los sempre mais fracos e covardes” (Pág. 91; 19-23).

O que os tiranos mais buscam, mesmo, é uma certa devoção dos dominados. “(...) É o segredo e a força da dominação, o apoio e fundamento de toda tirania. Muito se enganaria aquele que pensasse que as alabardas dos guardas e o estabelecimento de sentinelas garantem os tiranos” (Pág. 99; 27-30).

“Não são as armas que defendem um tirano, (...) mas sempre quatro ou cinco homens que o apóiam e que para ele sujeitam o país inteiro. Sempre foi assim (...)” (Pág. 100; 6,8-9).

Os súditos são usados uns contra os outros, pelo tirano, para fins de preservação do poder. O tirano, assim, “é guardado por aqueles de quem deveria se guardar (...)” (Pág.101; 20) como quando “(...) para rachar lenha faz-se cunhas da própria lenha” (Pág.101; 21-22). Pois a aproximação da tirania pressupõe o total afastamento da liberdade e a entronização da servidão, num reino em que um bom caráter não tem vez, a menos que pactue no deplorável exercício do mal. Pois quem poderia ser, de fato, amigo de um tirano sem que, no fundo, não tivesse a intenção de usufruir o mesmo mal? “E, na verdade, que amizade esperar daquele que tem o coração duro o bastante para odiar um reino que só faz obedecê-lo, e de um ser que, não sabendo amar, empobrece a si mesmo e destrói seu próprio império?” (Pág. 103; 31-35).

Os tiranos antigos, em sua maioria, foram vítimas dos seus próprios amigos. Assim, a amizade verdadeira é sempre estranha à tirania. Somente pessoas de bem são reais merecedoras de seu afago. “A amizade é um nome sagrado, uma coisa santa (...)” (Pág. 106; 1-2). “(...) Não pode haver amizade onde se encontram a crueldade, a injustiça. Entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração, não uma sociedade. Eles não se entreapóiam mas se entretemem. Não são amigos, mas cúmplices” (Pág. 106; 7-10).

Como exortação final, numa demonstração de pura lucidez, La Boétie nos convida a aprender a fazer o bem, como se fôssemos portadores de uma mensagem crucial a toda mentalidade tirânica e cruel do presente, do passado e do futuro: “Levantemos os olhos para o céu e para nossa honra, para o próprio amor da virtude, dirijamo-nos a Deus todo-poderoso, testemunha de todos os nossos atos e juiz de nossas faltas. De minha parte, creio – e acredito não estar enganado – que ele sem dúvida reserva para os tiranos e seus cúmplices um castigo terrível no fundo do inferno, pois nada é mais contrário a Deus, soberanamente justo e bom, que a tirania” (Pág. 108; 23-30).



REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:


BOÉTIE, Etienne de La. Discurso da Servidão Voluntária. Trad. Laymert Garcia dos Santos. Editora Brasiliense, pp 73-108.




Terra em transe (Glauber Rocha)

segunda-feira, 26 de maio de 2008

O CONCEITO DA MORTE EM MONTAIGNE

Jorge Pi



Recolhido à torre do seu castelo, uma senhoria medieval situada entre Guienne e Périgord, perto de Bordeaux, o Seigneur de Montaigne, aos 37 anos de idade, escreve, entre outros trabalhos, os Ensaios, obra composta com argúcia e um estilo peculiar, em meio à dolorosa tristeza de ter perdido seu pai e, anteriormente, seu querido amigo Etienne de la Boétie, por quem nutria um sentimento verdadeiro da mais rara e sincera amizade (evento este sumamente amargo que lhe tornou a existência por demais melancólica).

A mais elevada expressão do Ceticismo, Montaigne toma a si mesmo como objeto de análise na medida em que redige os seus Ensaios. Conduzindo-se por uma pura tendência ao devaneio e à reflexão, como um desdobramento resultante de seu antigo e bom hábito de fazer anotações sobre as obras clássicas que lia, ele aborda lucidamente os diversos temas tratados num encadeamento progressivo e exaustivamente aprofundado.

Apreende-se facilmente, em Montaigne, uma contínua aproximação da sabedoria antiga, por suas inúmeras citações dos escritos de Plutarco, Juvenal, Terêncio, Horácio, Lucrécio, Virgílio, Pérsio, dentre tantos outros; e, em especial, Sêneca, este estóico romano que o influenciou fortemente com a idéia filosófica de que devemos nos familiarizar com o conceito da morte; sobremodo, alguém como ele que sempre conviveu com a dolorosa e quase insuportável ação de cálculos biliares (provável herança paterna) a tornarem-lhe a vida um pesado incômodo em um suplício interminável.

No capítulo XX, Livro Primeiro dos seus Ensaios, intitulado “De como filosofar é aprender a morrer”, ele inicia dizendo que, conforme Cícero (estóico), filosofar é se preparar para a morte.

De que quer nos alertar o filósofo francês, ao utilizar essa citação? Que podemos abstrair de tais palavras que, envoltas em aparência de simplicidade literária e sendo uma sintética e completa fórmula demonstrativa da tão almejada arte de ser feliz, são capazes de fazer abranger toda a sorte de reflexões pertinentes à condição de ser e de se saber ser humano?

Quando estudamos e meditamos, ou exercitamos o processo da reflexão profunda a respeito dos grandes problemas da existência, somos levados a sair de nós mesmos, do nosso mundo limitado e extático (repleto de conturbadas e intricadas aflições, apesar de recheado de eventuais, ilusórias e passageiras alegrias).

De forma semelhante a quando estamos nas imediações fatídicas da própria morte, ao penetrarmos espiritualmente as regiões mais sublimes da Sabedoria, somos lucidamente levados à real possibilidade de atingir o pleno conhecimento e a destemida compreensão da verdadeira natureza da morte.

Além do mais, como o próprio Montaigne afirma, toda sabedoria resulta em não se ter receio de morrer e nem tão pouco da própria morte, dada a sua patente e inegável inevitabilidade diante de nossa insensata e persistente tendência a fugir do mais ínfimo sinal de sua aproximação.

Assim, Montaigne demonstra uma sutil habilidade em conviver sabia e pacientemente com os duros golpes que o tempo invariavelmente nos reserva a todos. E não sem cicatrizes perenes e profundas, como quando a morte o privou da companhia de Etienne, seu maior amigo que, inclusive, em seu suspiro derradeiro (conforme está registrado no capítulo XXVIII, Livro Primeiro dos Ensaios, intitulado “Da amizade”), entregou-lhe sua biblioteca e seus papéis, como forma de mostrar sua afetuosa atenção e fraternal estima.

Se, como todos sabemos, a morte é o fim para o qual nos encaminhamos, ocorre que, para o homem vulgar, o natural é sempre estarmos esquecidos dela. E a vida se passa, em seu entendimento medíocre e embotado, como que em uma inusitada espécie de “inconsciência propositada”; como se nunca fosse passar, nos domínios do tempo.

Tão próxima e conhecida de nós, a morte é, no entanto, sempre causa de grande pavor e repulsa para a mente do homem mediano e irrefletido. Atribuindo a si, insensata e insistentemente, um falso estatuto de invulnerabilidade, ele se esbarra, no entanto, na sua finitude inconteste, espelhada no falecimento alheio, e vê diluída a sua tola e delirante pretensão de imortalidade.

Na verdade, são diversos e reais por demais os modos de sermos surpreendidos pela morte. Em tranqüila condição de vida, estamos sempre indo e vindo, apressados ou não, tristes ou alegres, animados ou desanimados; sem a menor indicação da iminência da morte.

No entanto, de repente ela nos toma de assalto, ou a um nosso familiar, ou a um amigo querido do nosso coração. E, então, dizemos que somos pegos como que de surpresa (sendo-o, de fato, ou não), e nos desesperamos em gritos de agonizantes vitimados pelo destino. Como se não fôssemos sabedores da existência da morte.

Por isso, é preciso nos preocupar antecipadamente com todas as suas nuances e todos os seus contornos para que, quando estivermos sucumbindo na armadilha do momento derradeiro, possamos celebrar a serenidade de quem sabe e entende a vez da perda e da separação definitiva, aliás, sabidamente inevitável.

Caso a morte fosse evitável, o normal seria nos escondermos dela. Mas, de que adianta, já que, covardes, corajosos, fracos ou fortes, todos somos subjugados igualmente aos seus domínios, no instante fatídico e derradeiro?

Portanto, não façamos o habitual. Enfrentemo-la firmemente em cada circunstância provável de sua manifestação. Pois mil alegrias podem ser mil portas de acesso à espera da morte. Cada circunstância em que nos encontramos carrega em si o potencial de ser a última em que exalaremos o derradeiro suspiro.

E a ninguém é dado saber onde a morte está à espreita, aguardando. Por isso mesmo, aliás, devemos esperá-la concretamente em toda parte e ocasião.

Ademais, refletir sobre a morte é o mesmo que refletir sobre a liberdade. Na mesma proporção em que se aprende a morrer, apreende-se a consciência da verdadeira liberdade. E aí nenhum mal nos acometerá; nenhum constrangimento e nenhuma tirânica sujeição. Pois ser livre é ser senhor da vida e da morte; e a morte é apenas o último instante da própria vida.

Com tudo isso, Montaigne diz ser um sonhador, não um melancólico. É que ele possuía uma imaginação laboriosa desde a sua adolescência, de quando se lembra que já então se via às voltas com tais pensamentos sobre a morte.

Já a partir daquela época, estando em meio a festas e diversões, pensava-se que ele se encontrava com o olhar distante e meditabundo, por preocupação com ciúmes e paixões, quando na verdade era sobre certo alguém que, logo após ter saído de uma outra festa, após deixar-se entregar ao ócio e aos prazeres mundanos, fora acometido por uma febre e morrera, fulminantemente.

O filósofo francês, na verdade, vivia cada instante de sua existência, como se já houvesse chegado sua última hora. Porém, não sob o domínio do medo ou da aflição, mas imbuído de uma profunda lucidez de quem não ignora a realidade. Aliás, ele afirmara que a coisa de que mais tinha medo no mundo era justamente o próprio medo. A paralisia estabelecida pela força coercitiva do medo em tudo nos afeta, sendo assim necessário que saibamos a cada instante, se não eliminá-lo, ao menos controlá-lo e dirigi-lo.

Temos medo quando, por espírito de defesa, inconscientemente ou não, fechamo-nos às possibilidades da realidade atual em que, na maioria das vezes, não se configura como propiciadora de perigo iminente nem tão pouco em simultânea realização de algum revés.

Então, sob o domínio do medo, deixamos de nos entregar plenamente às oportunidades de crescimento concreto e verdadeiro e não nos ocupamos devida e objetivamente com os nossos afazeres reais da ordem do dia. Até mesmo não usufruímos os nossos divertimentos, não nos fazendo presentes, em corpo e alma, mas projetando-nos, em razão de "pré-ocupação” descabida e inoportuna, a uma realidade que não existe no momento e que possivelmente nunca irá, de fato, existir.

Para Montaigne, o advento da morte não há de trazer em sua bagagem nenhum indício de surpresa caso haja, de fato, a constante e ininterrupta preparação para o seu advento. Sendo nula qualquer possibilidade de susto e de toda atmosfera desconcertante do imprevisto.

Em Montaigne, o sentimento da morte era constante, não como uma doentia mania de uma alma desequilibrada que se lança cegamente para a consumação do suicídio; mas como uma característica de lucidez de quem, vigilante e pró-ativo, está sempre envidando esforços para não perder a consciência do próprio corpo e dos pensamentos; da própria vida e das circunstâncias; da própria morte e da mortalidade.

E não apenas se ocupava a pensar, mas também dela falar constantemente; realizando, através da incomum capacidade de estar consciente de sua finitude, uma interação com o Universo, como “co-partícipe” do funcionamento das leis que regem a vida. Então, como “nascer é começar a morrer”, como disse Manílio[1], e se devemos primar por estarmos vigilantes e conscientes em todos os instantes de nossa vida cotidiana para nos considerarmos vivos, plenamente, assim também precisamos dar atenção à nossa própria morte, como natural e apoteótica conseqüência.

Estar consciente é antes de mais nada fazer valer o estatuto de ser, de participar, de compreender, de tentar, de buscar, de perder, de ganhar, de aprender. Enfim, de viver em harmonia consigo mesmo no intuito de não se fazer passar pelo que não é, numa busca legítima pela coerente manifestação de pensamentos, palavras e ações.

E, assim, cultivando-se a autenticidade na vida, encaminha-se para a autenticidade e a verdade na morte, ocasião em que não há dissimulação e fingimento, por não haver a menor possibilidade de se morrer mais ou menos, ou exatamente como outra pessoa. Morremos em nós mesmos, e apenas em nós mesmos; e numa experiência que constitui ao mesmo tempo em ausência e testemunho, factuidade e nulidade. Enfim, vivenciamos, solitários, a nossa própria morte.

A vida, por ela própria, não constitui absolutamente um bem nem um mal. Depende sempre do que dela fazemos.

Por isso, bem disse Montaigne que um dia apenas já nos basta para que possamos morrer, tendo visto tudo, pois cada dia é igual a todos os outros, em sua essencialidade última circunscrita em todo um emaranhado de diversidade repleta de combinações que repercutem no aparente novo.

Quanto quer que dure a nossa vida, no que diz respeito ao ciclo concepção-gestação-nascimento-vida-morte, ela é completa e íntegra em si mesma. Resta-nos, tão-somente, empregá-la bem para que sejamos dignos de uma boa vida assim como de uma boa morte.

Pois viver intensa e conscientemente um curto espaço de tempo vale mais do que viver por muito tempo sem, no entanto, celebrar a atualidade e a autenticidade de cada momento em plena e total doação de si para que seja íntegra e verdadeira a consciência de ser, em real completude.

No capitulo XIII do Livro Segundo dos Ensaios, intitulado “De como julgar a morte”, Montaigne nos diz que raramente pensamos ter chegado a hora de nossa morte, quando é certa a consumação final. Como se nos iludíssemos de propósito quanto à nossa pretendida importância diante do mundo, da vida, dos homens e até de Deus.

Imaginamos que o mundo sentiria por demais a nossa ausência e que faríamos falta real na ordem das coisas e dos homens. Mas isto, em verdade, é um engano. O mundo fica e a vida continua. Os nossos parentes e amigos choram pela nossa partida, mas logo enxugam as lágrimas e seguem seus caminhos sem nós.

Nós somos o nosso próprio referencial, sempre. Estimando-nos demasiadamente, incorremos no erro de inferir com imprecisão aquele momento que, de todos, é para nós o mais certo, apesar de não sabermos quando irá chegar.

Sendo assim, o estado de ânimo de uma pessoa no momento de sua morte pode tornar obscura a iminência certa e fatal, levando à ilusão da continuidade da vida. Pois o nosso instinto de sobrevivência sempre nos nutre da esperança de não morrer, de escapar... Como se fôssemos eternos e a morte fosse tão-somente um pesadelo que se desvaneceria ao nos acordarmos de um sono ruim e tempestuoso.

Segundo Montaigne, é de admirar que, apesar de a morte ser a mesma para todos nós, haja tantos que não sabem acolhê-la devidamente.

O fato é que quando ela vem, tudo muda à nossa volta, como se um mascarado revelasse a face nua e verdadeira, substituindo a feição de horror pela da simplicidade.

E, ao finalizar suas reflexões no capítulo XX dos Ensaios, Montaigne, reportando-se àquele tipo de atmosfera criada artificialmente e que retira toda a dignidade do sagrado instante da morte, dirige-nos a todos o seguinte pensamento: “Feliz é a morte que nos surpreende sem que haja tempo para semelhantes preparativos” (pág. 49).

Corroborando a agudeza reflexiva encontrada no legado deixado a nós, por Montaigne, podemos concluir que os mais apropriados preparativos para a morte não deveriam ser tomados nas enfermidades e nas adversidades, acidentais ou não, de nossa conturbada e improvisada existência.

Mas deveríamos buscar em cada momento de nossa vida a realização dos nossos afazeres como se estivéssemos nos instantes derradeiros. Pois, assim, não agiríamos negligentemente e não desperdiçaríamos o tempo que nos cabe para realizarmos nossa missão na vida, seja ela qual for.

Assim, o conceito da morte em Michael de Montaigne, ao tempo em que nos instiga a sermos responsáveis pela administração da nossa própria vida, aponta-nos sabiamente para a senda que nos distancia da escravidão e nos direciona inevitavelmente para aquilo a que mais almejamos: a destruição das correntes do medo, mediante a aquisição da verdadeira e inalienável Liberdade.





[1] MONTAIGNE, Michael de. Ensaios. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p. 48.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

VER E SER



L
embrando...


... que devemos buscar
sempre "vigiar"
(lançando o olhar objetivo
nas coisas que nos rodeiam, "aqui e agora",
a fim de experienciarmos o "ver",
libertando-nos dos grilhões
do "pensar subjetivo",
muitas vezes carregado
das impurezas dos falsos julgamentos a respeito de tudo)
e orar para que venhamos a nos tornar
verdadeiros Instrumentos/Agentes da Paz Profundaem nossos pensamentos, palavras e ações,
degustando o doce sabor de eternidade
a que todos somos destinados,
desde que façamos por merecer,
por nos tornarmos como criancinhas
diante dos portais do Reino de Deus.


Jorge Pi

OMISSÃO (COM "CLIP")


(Jorge Pi)


Só sei ficar calado.
Não sei falar, de fato.
Não falo.
O que devo, não digo.
Não digo.
O que devo, não falo.
Muita coisa pra falar;
Tanta coisa sem dizer.

Só sei subir sentado;
Não sei saltar sanado.
Se salto, não salto sanado;
Se subo, só subo sentado.
Muita coisa pra falar;
Tanta coisa sem dizer.
Só sei ficar calado;
Não sei falar, de fato.

Tempo passa muito depressa!
Vida apressa o passo do tempo!
Passo apressa o tempo da vida!
Pressa afeta a vida do tempo!

E eu, sem ter pressa,
Fico calado, subo sentado
E não digo.
Não digo tudo, não digo nada;
Nada que deva ser dito.


(Nº. Registro da Obra: 415865, L. 777, Fls. 25, em 13/11/2007 – Biblioteca Nacional.)


                              

FALAR EM PÚBLICO

Todos falamos! Mas, muito poucos falamos bem! E, em número ainda menor, somos aqueles que falamos bem, dirigindo-nos ao público, quer este seja uma simples roda de amigos, uma classe de alunos numa sala-de-aula ou mesmo uma imensa platéia numa palestra ou conferência.

Sim, pois a arte de falar bem em público está diretamente relacionada a todo um complexo sistema de acurado desenvolvimento interpessoal.

Todo aquele que um dia quiser ser bem apreciado, atenciosamente ouvido, comprometidamente apoiado naquilo que argumenta e defende, terá que ser, antes de qualquer coisa, autêntico na expressão da verdade proferida, edificante nas considerações anunciadas e, mais importante ainda, ser capaz de criar certa cumplicidade no elo de ligação entre ele próprio e os que o ouvem.

E acurado desenvolvimento interpessoal implica em sermos íntegros na emissão da mensagem sendo, ao mesmo tempo, cautelosos quanto a quem a recebe.

Não que devamos simular atitudes; mas que nos projetemos abertamente, tais quais sejamos interiormente, através do menor dos nossos gestos. Nem que tentemos dissuadir concepções arraigadas na mente de quem quer que seja; mas, se quisermos nos integrar de corpo e alma com os que nos concedem o seu tempo para nos ouvir, por menor que ele seja, temos que possuir uma intenção pura, desprovida de qualquer malícia, para, assim, tocar-lhes a mente e o coração.

Toda argumentação é passível de aceitação ou de repulsão. Quer por adesão gratuita ou convicção reforçada; quer por dogmas pré-estabelecidos ou apenas por caprichoso espírito de contradição.

Além do mais, há que se respeitar as opiniões, os credos, as verdades de cada um.

Mas quando um fala, que todos o ouçam! Este é o princípio! Então, a melhor maneira de se conseguir ser ouvido é através de um encantamento dirigido a todo o ouvinte, mediante uma harmonia da voz bem articulada, com um timbre suave e ao mesmo tempo forte, uma naturalidade a toda a prova nas gesticulações e ações conjuntas de cada fibra, por todo o corpo, além de um completo domínio do assunto exposto.

Que não haja mais, separadamente, aquele que fala, aquilo do que se fala e a maneira como é falado. Mas que haja uma só unidade, um só fenômeno: a pura manifestação da mensagem mesma.

Eis, talvez, o grande segredo da oratória: o de sermos simples instrumento de expressão da/de Humanidade, para que a própria Humanidade, presente na platéia - ou, em quem ouve -, mire-se naquele que fala, apercebendo-se dela própria.


Jorge Pi